"Vimos que a gramática greco-latina era normativa e se podia definir como a arte de falar e escrever corretamente. Será que essa gramática deve ser abandonada, como sustentam alguns linguistas, especialmente norte-americanos? Um deles, por exemplo, intitulou um seu livro de divulgação linguística Deixe a Sua Língua em Paz (Leave you language alone; Hall, 1950).
A resposta que parece certa é que há em tal atitude uma confusão entre duas disciplinas correlatas mas independentes.
A gramática descritiva, tal como a vimos encarando, faz parte da linguística pura. Ora, como toda ciência pura e desinteressada, a linguística tem a seu lado uma disciplina normativa, que faz parte do que podemos chamar a linguística aplicada a um fim de comportamento social. Há assim, por exemplo, os preceitos práticos da higiene, que é independente da biologia. Ao lado da sociologia, há o direito, que prescreve regras de conduta nas relações entre os membros de uma sociedade.
A língua tem de ser ensinada na escola, e, como anota o linguista francês Ernest Tonnelat, o ensino escolar "tem de assentar necessariamente numa regulamentação imperativa" (Tonnelat, 1927: 167). Assim, a gramática normativa tem o seu ligar e não se anula diante da gramática descritiva. Mas é um lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer linguística sincrônica com preocupações normativas.
Há a esse respeito algumas considerações, que se fazem aqui necessárias. Antes de tudo, a gramática normativa depende da linguística sincrônica, ou gramática descritiva em suma, para não ser caprichosa e contraproducente. Regras de direito que não assentam na realidade social, depreendida pelo estudo sociológico puro, caem no vazio e são ou inoperantes ou negativas até. Só é altamente nociva uma higiene que não se assenta em verdades biológicas. Não se compreende uma situação inversa. Depois, mesmo quando convém a correção de um procedimento linguístico (porque marca desfavoravelmente o indivíduo do ponto de vista da sua posição social, ou porque prejudica a clareza e a eficiência da sua capacidade de comunicação, ou porque cria um cisma perturbador num uso mais geral adotado), é preciso saber a causa profunda desse procedimento, para poder combatê-lo na gramática normativa. Finalmente, a norma não pode ser uniforme e rígida. Ela é elástica e contingente, de acordo com cada situação social específica. O professor não fala em casa como na aula e muito menos numa conferência. O deputado não fala na rua, ao se encontrar com um amigo, como falaria numa sessão da Câmara. E assim por diante.
Quando o linguística sincrônico se insurge contra o gramático normativo ou professor de língua, é porque este e aquele declaradamente desobedecem esses três preceitos. Impõem as suas regras praxistas como sendo linguística. Corrigem às cegas, sem tocar no ponto nevrálgico do procedimento linguístico que querem corrigir e com isso só criam confusão e distúrbio. Partem do princípio insustentável de que a norma tem de ser sempre a mesma, e fixam um padrão social altamente formalizado como sendo o que convém sempre dizer.
O remédio é o professor de língua e os homens em geral aprenderem os princípios gerais da linguística. Para isso, a melhor solução parece ser fornecer-lhes uma gramática descritiva, desinteressada de preocupações normativas. Há apenas uma observação final a fazer. Se a língua é variável no espaço e na hierarquia social, ou ainda num mesmo indivíduo conforme a situação social em que se acha, a gramática descritiva pode escolher o seu. Campo de observação. Se ela tem em vista, indiretamente, o ensino escolar, como é o objetivo implícito do presente livro, a escolha está de certo modo predeterminada. A descrição tomará por base, evidentemente, uma modalidade popular ou remotamente regional. Muito menos vai assentar num uso elaborado e sofisticado, como é, por exemplo a língua da literatura. Partirá do uso falado e escrito considerado "culto", ou melhor dito, adequado às condições "formais" de intercâmbio linguístico no sentido inglês do adjetivo." (Mattoso Câmara Jr., 2006: 15-16)