Alguém já ouviu falar dos "lacerdinhas" de Brasília?
"De longe é bonito de ver; de perto, é um inferno. O começo da seca traz, como contraste ao céu anil, os redemoinhos que jogam terra vermelha e folhas esturricadas para o alto, nas áreas mais abertas da cidade. São os lacerdinhas, apelido que homenageia Carlos Lacerda, político de sulfurosos discursos que causavam um reboliço danado.
Chamado de O Corvo, Lacerda foi um dos maiores adversários da construção de Brasília e tinha como passatempo derrubar presidentes, ou seja: redemoinho é até pouco para o furacão Lacerda. Em outras cidades, lacerdinha é um mosquitinho que adora voar em volta do olho da gente, perturbando; é outra história, mas o Lacerda é o mesmo.
E só quem já enfrentou um lacerdinha brasiliense num descampado sabe o que é aquele inferno. Ele surge de repente porque, ao contrário do que se pode supor, não surge da junção de correntes aéreas conflitantes, mas exatamente da falta de vento, somada ao aquecimento do solo — talvez a Maju explique melhor. Mas quando sobe, leva tudo, principalmente a fina poeira vermelha do nosso chão.
Domingo passado vi o primeiro lacerdinha do ano. Subiu perto da moça que estava com roupa de ir à missa, mas indo em direção ao ponto de ônibus, carregando apenas uma pequena bolsa e, claro, falando ao celular. Ela não viu nada.
Quando deu por si, tentava segurar a saia que subia e descia, punha as mãos para buscar uma inútil proteção para o cabelo, cuspia para evitar que a poeira entrasse pela boca e corria. Mas parecia que o lacerdinha era ensinado: foi atrás da moça, que não se desvencilhava do fenômeno e tentava sobreviver — eu não me surpreenderia se daquele tordelinho saísse um saci de carapuça vermelha e pitando seu cachimbo.
No boteco próximo, dois gatos pingados que estavam em uma mesa só tiveram a reação de cobrir os copos de cerveja com as mãos e fechar os olhos. Não havia nada a fazer por aquela pobre moça. Durou uma eternidade de 20 segundos.
Passada a tormenta, ela olhava para os lados à procura de alguma coisa, ainda aturdida; mas era domingo, havia quase ninguém na rua. Estava que era só poeira, vermelha dos pés à cabeça, cabelos desgrenhados, bolsa segura pela mão — foi tão sério que ela parou de falar ao celular.
Os dois jovens se levantaram. De pé, esvaziaram os copos num gole salvador, ao mesmo tempo em que sacudiam o pó da roupa; a senhora que estava no balcão jogou um pano na mesa e pegou uma vassoura para limpar a varanda do quiosque. A moça, coitada, deu meia-volta; deve ter ido tomar outro banho porque, com certeza, não ia perder o domingão.
As cidades do Distrito Federal já não têm tantos descampados; os gramados — mesmo cinzentos de sede — também contribuem para que não haja mais tantos lacerdinhas. Anos atrás, com menos prédios, vários deles se levantavam de uma só vez, um cenário de filme de horror. Mas todo início de tarde, basta olhar um pouco para o alto que a poeira vai aparecer. De longe, são bonitos de ver."
Fonte:
http://novo.clipclipping.com.br/coluna/ler/noticia/2814324/cliente/133Cunha é um "lacerdinha"???