Clichê? Em nenhum momento eu disse que o seu discurso justificava a atitude do criminoso, eu entendi muito bem que a intenção era explicar os seus motivos e não justifica-los. Além disso, apontar a mentalidade consumista típica do capitalismo como responsável pela criminalidade também pode ser chamado de clichê, um clichê socialista muito conhecido por sinal, mas eu não entrei no mérito de ser ou não um clichê, eu apontei o motivo por acreditar que está explicação esteja errada, enquanto você se limitou a dizer que usei um clichê batido, sem no entanto apontar aonde é que eu estava errado. O que eu disse simplesmente foi que a mentalidade consumista e o desejo por status e poder é menos responsável por causar a criminalidade do que os valores sobre o que é certo ou errado fazer na busca por resultados. Não importa se você é um monge que não tem nenhum desejo por status e poder, se recusa bens superficiais como carros ou casas luxuosas, preferindo uma casa simples e um carro popular, para priorizar investir a maior parte do seu esforço em conseguir acesso a informação e educação de qualidade por exemplo, se você acha que para alcançar esta vida é permitido subjugar aqueles que pensem diferente de você, possua bens que você julgue que eles não mereçam possuir ou que é permitido tomar seus recursos por julgar que eles não o usam da forma mais adequada, a criminalidade continuará alta, mesmo que o status, o poder e o consumo de itens de luxo não sejam mais um ideal.
Eu devo explicar melhor.
A maioria das pessoas vai concordar em grande parte com o que é considerado moral e o que não é. Mesmo o pior facínora deve compartilhar com você a maioria dos seus conceitos sobre certo e errado.
Ele age da forma que age mesmo sabendo que é errado. A moralidade é um freio para algumas pessoas mas para outras não. Na verdade é mais exato dizer que a moralidade é um freio para todas as pessoas e não é um freio para ninguém. Ou seja, existe um balanceamento entre seus valores morais e seus desejos e necessidades.
Às vezes a moral impede a realização da vontade, às vezes o desejo é mais forte que o senso moral.
E nós, como seres humanos, vivemos entre estes dois tipos de tendências conflitantes: a necessidade/desejo x valores morais. E nossas atitudes não serão sempre fruto de escolhas racionais, calculadas. Todos nós podemos ser induzidos por forças internas e externas a agir, não só contra nossos valores morais, mas até contra nossos próprios reais interesses.
Se o crime, uma atividade imoral, proporcionasse ao criminoso uma vida maravilhosa nós poderíamos facilmente explicar este comportamento apenas como uma deformação moral de um indivíduo que só se
interessa pelo seu próprio benefício, sem se importar com o direito alheio.
Mas essa não é a realidade. Eu não posso entender que só a deformação moral explique a "escolha" de vida do assaltante que eu citei, porque o cara só tá se ferrando! E depois de anos nesse suplício já deveria ter dado pra perceber que ele tá numa bosta de vida.
De fato, antes de entrar nessa vida o moleque já sabe o que o espera, porque ele já tá entrando na vaga de algum outro moleque que morreu cedo. Então a gente fica curioso pra compreender o que está acontecendo de fato, porque só esse discurso de "são uns vagabundos que querem se dar bem" não se sustenta mesmo numa análise superficial.
A natureza humana e a índole das pessoas não deve ter mudado muito nos últimos 30 anos, então
porque hoje há muito mais "vagabundos" do que há 30 anos? Alguma coisa mudou. Alguma coisa está mudando. E eu também não estou dizendo que uma mentalidade exacerbadamente consumista seja a única causa de um problema que tem muitas causas.
E sem dúvida não é o capitalismo, porque essa Terra de Vera Cruz é capitalista desde as Capitanias Hereditárias. Então isso também não mudou nos últimos 30, 40 anos... Mas um aspecto que vem mudando, sutilmente, é a cristalização de uma nova mentalidade, que sempre foi muito mais afeita à cultura americana do que a europeia, na qual o "ter" possa a ter um peso cada vez mais
desproporcional na construção da auto-imagem de cada indivíduo.
Claro que isso também não é novidade na História do mundo: um homem de posses no Brasil colônia também tinha mais status, o que lhe proporcionava auto-estima superior a de um escravo. O que é novidade é uma pressão cada vez maior para as pessoas consumirem bugigangas sem muita importância, como calçados de marca, vestuário de griffe, certos tipos de veículos automotores, gadgets, etc... e uma publicidade que espertamente não quer convencer o consumidor que a utilidade daquele produto vale cada centavo do que ele teria que pagar para adquiri-lo, mas em vez disso, de uma maneira diabolicamente engenhosa, induz sub-repticiamente a pessoa a acreditar que adquirir certos produtos é o determinante para a maneira como ela será vista e tratada pelos outros na sociedade.
Nós podemos dizer que essa mentalidade consumista sempre existiu, assim como sempre existiu essa inclinação de valorar pessoas pelos bens que elas possuem. Mas está havendo uma exacerbação dessa mentalidade que é socialmente patológica e tem suas consequências nefastas.
Aquele Brasil tranquilo do tempo da ditadura era uma sociedade capitalista mas não tão consumista porque todo mundo tinha o mesmo automóvel, o mesmo fusca, todos os meninos calçavam kichute, só
havia um canal de TV, só uma ou duas marcas de sabonete, de pasta de dente, de cerveja... Seria impensável naquela época alguém dizer que assaltava carro forte pra comprar tênis da marca X porque em uma sociedade em que pobre e rico usa kichute, o tipo de calçado que você calça não vai ter tanta importância assim.
Claro que isso não foi a única coisa que mudou e é só um fator entre vários outros que contribuíram para essa deterioração da segurança pública. Mas o que talvez a Tiburi tenha se esquivado de responder é: "Pô, como é que nós estamos há 30 anos cultivando valores invertidos nessa sociedade e ainda esperamos não termos que lidar com as consequências disso?"