Isso está interessante mas vamos tentar organizar um pouco as coisas porque as críticas estão um tanto difusas.
1 - Por que digo que não houve firme sustentação legal.
Não sou advogado, me baseio, talvez como a maioria de vocês, no que é publicado na imprensa. Por favor, alguém me corrija quando eu errar.
Segundo a constituição para haver impeachment é preciso que o presidente tenha cometido crime de responsabilidade no atual mandato. Até onde eu sei o único crime de responsabilidade alegado para a abertura do processo foi a tal da "pedalada fiscal", portanto os itens (a), (b) e (c) listados pelo Geotecton não foram aplicados neste caso.
As "pedaladas" consistem na prática de maquiar contas para parecer que o governo não está tão no vermelho como realmente está. De acordo com a AGU isto vem ocorrendo desde o mandato de FHC e a interpretação disso como um crime de responsabilidade é bastante controversa, ainda mais como sustentação para interromper um mandato presidencial.
No início de toda essa onda a maioria dos juristas importantes parecia não concordar com a tese. De qualquer forma, segundo a lei, o crime teria que ter ocorrido no atual mandato. Dizem que as pedaladas continuaram em 2015 mas as contas de 2015 só seriam analisadas este ano, e eu realmente não sei como isto ficou mas acho estranho que Dilma tenha "pedalado" em 2015 por duas razões:
- A pedalada é usada para iludir o mercado financeiro e os especialistas em contas públicas. Não dá para enganar ninguém quando o truque já está exposto.
- Se ela já sabia que isto estava sendo usado como pretexto para o impeachment por que continuaria a fazer? Ainda por cima sabendo que a tese só poderia adquirir alguma validade se ela justamente pedalasse neste mandato.
Nesta última sexta o ex-ministro Joaquim Barbosa, um dos de maior credibilidade nos últimos anos, se pronunciou a respeito:
A alegação é fraca e causa desconforto. Descumprimento de regra orçamentária é regra de todos os governos da nação. Não é por outro motivo que os estados estão quebrados. Há um problema sério de proporcionalidade. Não estou dizendo que ela não descumpriu as regras orçamentárias. O que estou querendo dizer é que é desproporcional tirar uma presidente sobre esse fundamento num país como o nosso
Vão aparecer dúvidas sobre a justeza dessa discussão.[...] Quanto à justeza e ao acerto político dessa medida tenho dúvidas muito sinceras"
De qualquer forma, independentemente dessa discussão sobre filigranas jurídicas, o golpe político fica evidente no fato de que primeiro começaram a articular o impeachment e só depois é que foram buscar um motivo. E o primeiro motivo tentado era legalmente insustentável: atos praticados no mandato anterior.
Isto, em resumo, é o que o próprio Eduardo Cunha declarou no Roda Viva.
2 - Porque eu considero que isso é muito grave.
A motivação foi oportunista. Diferentemente do que ocorreu com o Collor, quando primeiro apareceram as denúncias e aí o oportunismo político ( incluindo o do próprio PT ) se aproveitou disso, agora o oportunismo se antecipou à existência do crime. A oportunidade dessa vez surgiu da conjuntura: o clima de insatisfação geral evidenciado pelos protestos de 2013, uma presidente que se reelegeu com uma margem irrisória de votos com a popularidade despencando e uma crise econômica galopando.
Se toda vez que um governo estiver fragilizado politicamente ele for derrubado pela oposição ( e até pelos partidos aliados ) não vai ter mais governo este país. O que está acontecendo aqui é uma história muito característica de "repúblicas de bananas"; de 4 presidentes eleitos 2 são chutados por um golpe ( sim, Collor também foi golpe ) e isso não é um processo de combate à corrupção mas uma disputa pelas oportunidades de corrupção. É esta disputa que está derrubando governos, como acontece com toda república de banana, mas com consequências muito sérias ( a médio e longo prazo ) para um país com o tamanho e a complexidade da economia do Brasil porque não é possível ter estabilidade e confiabilidade das instituições dessa forma.
Parece que nos EUA já houve outros processos de impeachment além do Nixon, mas isto em mais de 200 anos. E o do Nixon pelo menos não foi golpe político. Aliás, lá é difícil transformar impeachment em golpe político porque assume um vice do mesmo partido. Aqui parece que a jovem democracia já nasceu disfuncional.
3 - Qual a verdadeira relevância de se perder a oportunidade de cassar democraticamente, nas urnas, um grupo político o qual se demosntrou publicamente, para além de qualquer dúvida, atolado até o pescoço na lama da corrupção.
Isso merece uma análise mais cuidadosa.
Cerca de 2/3 daqueles caras que foram lá bradar "pela minha família, pelo meu filho... pela vovó... para acabar com a corrupção neste país...", uns 70% destes descarados, estão citados, delatados, implicados ou sendo processados por algum tipo de desvio de conduta. Nem sei se existe situação semelhante na câmara de algum outro país.
O próprio sujeito que conduziu o processo de impeachment está citado em várias delações da Lava-jato; em se tratando de pessoa física foi um dos grandes receptores de recursos desviados da Petrobras e já se tem conhecimento de várias contas milionárias que ele mantém no exterior. Além disso quando viaja - está documentado - gasta no cartão de crédito como se fosse um sheik do petróleo.
O vice que vai assumir também aparece em delações da operação Lava-jato. E tem uma coisa que pouco se fala, até na imprensa, mas o Michel Temer também pedalou. Na ausência da Dilma, quando no exercício da presidência, o Temer também praticou pedaladas fiscais. Logo, uma vez empossado deveria se iniciar imediatamente o processo de impeachment contra ele.
Porém... eles parecem preocupados?
Corruptos não combatem a corrupção assim como traficantes não combatem o tráfico de drogas. Se isso fosse um processo que parecesse dificultar a mamata daqui para a frente, esse congresso podre não estaria aderindo com tanto entusiasmo.
Pense um pouco: se você estivesse no lugar do Eduardo Cunha iria querer mexer nesse vespeiro? Ou iria preferir fazer um acordo para encerrar o caso?
Mas ele parece muito tranquilo, muito confiante, com a certeza de que nada vai acontecer. Conhecendo o terreno onde pisa muito mais do que nós ele parece saber que a Lava-jato já chegou onde tinha que chegar, que a coisa não vai adiante. E nem mesmo de uma retaliação por parte do grupo prejudicado - que sabe muito - ele parece ter medo.
Outro dia nosso colega Libertário postou um texto que fazia uma reflexão interessante:
[...] a seleção de governantes através de eleições populares torna praticamente impossível que uma pessoa inofensiva e decente chegue ao topo. Presidentes e primeiros-ministros conseguem conquistar suas posições por causa de sua eficiência em serem demagogos moralmente desinibidos. Assim, a democracia praticamente garante que apenas os homens perigosos chegarão ao topo dos governos.
Esta é uma verdade tão chocante que quase ninguém quer refletir sobre isto. Mas é um fato que a classe política, não só no Brasil mas em toda parte, parece aglutinar a escória moral da sociedade. O sistema político-partidário em uma democracia representativa é um filtro darwiniano que seleciona sistematicamente os indivíduos mais cínicos, mais inescrupulosos, mais capazes de agirem sem sentir culpa, mais irresponsáveis até.
Para compreender este fenômeno tente imaginar que razões uma pessoa decente e mais ou menos idealista teria para se filiar a um partido como o PMDB, por exemplo.
É difícil imaginar um motivo.
Não é impossível, mas uma pessoa decente filiada ao partido já teria mais dificuldade para se lançar como candidato a vereador. Porque nesse meio o honesto é um estorvo. Não faz acordos, atrapalha os esquemas já estabelecidos e impede que se estabeleçam novos.
Subir na hierarquia do partido exige uma elasticidade moral cada vez maior. O sistema é de tal forma que se torna muito difícil que uma pessoa ética se lance candidato a uma posição superior no Legislativo ou no Executivo por um partido grande.
Só há uma coisa capaz de atenuar os efeitos nefastos desse filtro espúrio do sistema político-partidário: é o filtro do voto.
Porque ao contrário dos partidos e da classe política o eleitor não tem interesse em promover sociopatas. Seu interesse é oposto.
Então a democracia é sempre uma balança instável que precisa se equilibrar com estes dois pesos. Quando o voto não contribui muito como um peso depurador virtuoso a balança tende inteiramente para o outro lado. E isto acontece sempre que o eleitorado tem baixo nível de instrução, pouca consciência política e não está habituado a exercitar o senso crítico.
Democracias conhecidas por seus baixos índices de corrupção, como a Noruega, necessariamente são o fruto de um eleitorado muito instruído, muito bem informado e com muito interesse político.
Bom, é por isso que o deputado Eduardo Cunha se sente tão pouco ameaçado; ele conhece muito bem a classe política e as instituições degeneradas por essa classe que se estabeleceu na ausência do filtro virtuoso. Ele sabe que não tem mocinho nessa história. Nem Moro, nem STF, nem Ministério Público ou Polícia Federal.
A única coisa que faria alguém como Cunha ( ou Temer, ou Maluf, ou Lula, ou Jefferson... ) ser mais cauteloso, mais comedido, a refrear um pouco o ímpeto criminoso, seria ver o filtro virtuoso da escolha popular começar a funcionar.
E esta oportunidade dada por um governo nocauteado em pé agora se perdeu.