"As próprias áreas que desenvolviam o produto não entendiam ou não queriam ver a extensão do risco. Ninguém parou para pensar o que aconteceria se tudo desse errado, com um produto em que o cliente não podia limitar as perdas."
Nas empresas como nos bancos, os incentivos financeiros aplicados aos executivos conspiraram para que decisões irresponsáveis fossem tomadas. Todos tinham remunerações variáveis diretamente atreladas aos resultados gerados pelos derivativos. "O mercado financeiro é como uma criança. Se a autoridade não estiver olhando, vai testar o limite. A ganância é maior do que a responsabilidade", afirma um executivo que hoje está fora de bancos. Outro profissional lembra que ingressou no banco quando boa parte das operações com as empresas já existiam em volume elevados, o que o surpreendeu. Mas, em vez de tomar alguma medida prudencial, ajudou a impulsionar ainda mais as vendas. "Eu poderia ter sugerido parar? Poderia. Mas não fiz isso porque todo mundo ganhava bônus em cima dos resultados. Tenho minha parcela de culpa", admite.
No ambiente corporativo, a mesma coisa. "O maior equívoco das empresas foi confiar na 'era dos CFOs geniais'", diz um advogado que ajudou a arrumar a casa depois do tsunami dos derivativos. "A empresa toda achava que o cara era sensacional porque conseguia custos muito abaixo do mercado. Como ele estava conseguindo isso, não era conveniente perguntar em meio à euforia", define ele, sócio de um grande escritório em São Paulo. "No caso da Sadia, até houve uma tentativa do Cassio Casseb, que assumiu o comitê financeiro, de baixar os limites operacionais do Adriano Ferreira, o CFO. Mas os outros conselheiros não quiseram melindrar o Adriano", recorda-se uma pessoa próxima.
Um e-mail com data de 25 de outubro de 2007, um ano antes da crise, ajuda a ilustrar o grau de reverência que cercava um executivo financeiro tido como genial. Nele, o consultor Vicente Falconi, um dos conselheiros da Sadia e membro do comitê de Recursos Humanos da empresa, dizia o seguinte: "Existem negócios e pessoas imperdíveis. Imperdível quer dizer que faremos de tudo, sairemos de nosso caminho, para não perder. O Adriano é imperdível!" Ninguém imaginava que o desvio no caminho seria tão largo.
O desastre dos derivativos seguiu exatamente a mesma lógica das hipotecas americanas em sua construção. "Como na formação de qualquer bolha especulativa, ninguém quer ficar de fora dos ganhos e acontece o comportamento de manada, de euforia", diz um banqueiro. Levantamentos informais feitos no governo e no setor privado estimaram que entre 200 e 300 empresas carregavam derivativos tóxicos de alguma natureza quando a crise eclodiu, numa exposição cambial total entre US$ 30 bilhões e US$ 40 bilhões. Dessas, cerca de 50 eram grandes. O prejuízo total, efetivamente, teria sido da ordem de US$ 10 bilhões. Mas a verdade é que, pelas deficiências de controle, não existiam números consolidados sobre as operações. Além dos dois nomes que ganharam mais evidência, outras companhias tiveram grandes prejuízos. O frigorífico Bertin quebrou e foi comprado pela JBS, o grupo Votorantim anunciou perdas de R$ 2,2 bilhões.
A fabricante de aeronaves Embraer, a produtora de celulose Suzano, a varejista Hering e a fabricante de equipamentos médicos Baumer foram outros casos que se tornaram públicos, assim como a fabricante de pás eólicas Tecsis, que até hoje tenta se reerguer.
"Em 2007, o Credit Suisse Brasil teve a maior receita do mundo de bancos de investimento, bônus que caiu na conta em 2008", lembra um ex-executivo do banco. As operações de hedge entravam nessa conta. O banco explicava que operações mais complexas e "desafiadoras" eram também as mais rentáveis - o que justificava seu sucesso em relação à concorrência. "Nisso tinha IPO, tinha crédito, dívida e tinha muito derivativo", diz o executivo. O banco, na época comandado por Antonio Quintella, tinha um time de derivativos reconhecido no mercado como um dos mais arrojados, como Bruno Szwarc e Sergio Firmeza Machado, o Serginho. Embora muito ativo, o Credit Suisse não tinha contratos com Sadia e Aracruz, embora tivesse com Votorantim.
Se os bancos estrangeiros foram responsáveis por começar a disseminar os derivativos, o Itaú amplificou seu alcance como nenhum outro banco. Calcula-se que sua área de grandes
empresas, no auge, chegou a lucrar algo como R$ 300 milhões a R$ 400 milhões por ano com os derivativos alavancados.
A mesa de derivativos havia sido montada por Marcelo Maziero, que na época respondia a Eduardo Vassimon, hoje presidente do Itaú BBA. Já em 2008, a área recebeu outro reforço de
peso, de Alexandre Aoude, vindo do Deutsche. Para se diferenciar das instituições americanas e europeias, que faziam negócios com companhias de atuação global, o Itaú BBA partiu para empresas grandes brasileiras. O banco dava consultoria e ajudava os clientes a montar suas áreas de risco. Foi assim que se tornou bastante ativo junto ao grupo Votorantim, por xemplo. Em 24 de outubro, o Itaú informou ao mercado que 96 empresas clientes do Itaú BBA tinham feito derivativos alavancados e que, se todas liquidassem seus contratos naquela data, com o dólar a R$ 2,30, o banco teria a receber R$ 2,4 bilhões. No entanto, além de vender derivativos via o Itaú BBA, o banco colocou os empréstimos com duplo indexador na rede de agências, para empresas médias.
Uma reportagem do Valor à época indicou a existência de mais de 370 empresas do "middle market" do banco que passaram a ter seus empréstimos corrigidos pelo dólar com a explosão do câmbio. Cerca de 70 haviam conseguido liquidar as operações naquele fim de outubro, porém mais de 300 outras permaneciam à mercê da oscilação do dólar.
"Com muitos clientes, a relação do banco ficou muito abalada", recorda-se um executivo do Itaú. A rede de móveis e decoração Tok&Stok protagonizou um dos casos mais ruidosos de disputa com o banco. A empresa não tinha receitas em dólar e, em tese, não havia motivos para que contratasse proteção cambial, muito menos que especulasse com moedas. Mas os sedutores custos baixos dos empréstimos bi-indexados foram irresistíveis. A companhia firmou três contratos de swap de taxa com o Itaú BBA em 2006, para pagar ao banco 97% do CDI e, em outro contrato, CDI menos 1,2%. Isso para substituir uma dívida que a companhia já tinha de 120% do CDI. Era um ótimo negócio, desconsiderando o risco de disparada do dólar. Em diferentes datas pré-definidas, o banco fez 13 verificações sobre o valor do dólar e dos contratos, e a empresa não tinha nada a pagar. Mas na 14ª e na 15ª, com o dólar subindo, o banco foi executar o vencimento a pagar de R$ 6,3 milhões e R$ 679,8 mil, a companhia não tinha caixa e virou devedora em novembro 2008. O processo judicial que a Tok&Stok moveu contra o Itaú BBA só foi encerrado em fevereiro deste ano.
Obviamente, essa não foi uma exclusividade do banco
A Vicunha Têxtil, por exemplo, entrou em pé de guerra com a Merrill Lynch tão logo os derivativos saíram de controle. O banco cobrava dívida de R$ 232 milhões e a fabricante de denin liderada por Ricardo Steinbruch não concordava em pagar. O caso foi parar na Justiça e numa câmara de arbitragem e um acordo foi fechado em maio do ano seguinte, com a
companhia concordando em pagar R$ 174 milhões ao banco.
O ABN Amro era o banco com mais relacionamento com a Sadia. Até que os derivativos estouraram. João Teixeira era o "banqueiro" da companhia e um ano antes ele e sua equipe haviam assessorado a empresa na tentativa de tomada hostil do controle da Perdigão. O banco holandês, em processo de incorporação pelo Santander, também tinha contratos de derivativos com a Sadia e, por essa razão, foi o primeiro banco a quem os dirigentes da empresa recorreram quando a vaca foi para o brejo. No dia da quebra da Lehman, em 15 de setembro, Walter Fontana, ainda presidente do conselho de administração, amanheceu na sede do banco, que ficava na avenida Paulista, para discutir uma ajuda financeira. Saiu de lá com a impressão de que teria acesso a um novo empréstimo, mas nunca viu a cor do dinheiro. A Sadia foi socorrida por Bradesco e Banco do Brasil, com linhas de quase R$ 1 bilhão
cada um. Nenhum dos dois tinha derivativos exóticos com a empresa.
O Santander também não liberou dinheiro para auxiliar o Votorantim naquele momento delicado. O relacionamento entre o grupo dos Ermírio de Moraes e o banco foi cortado depois disso. "O Fabio [Barbosa] se desgastou muito com os espanhóis do Santander para tentar aprovar linhas de crédito.
A verdade é que a autonomia que tinha no ABN deixou de existir com a fusão", avalia um executivo. Para o tamanho do problema, pode-se dizer que foram poucos os casos que desaguaram na Justiça. Para o ex presidente de um banco, o que explica isso é o fato de que o material de venda dos produtos tóxicos que as instituições financeiras entregavam aos clientes era bastante completo. "Ninguém tinha condições de dizer que ignorava os riscos envolvidos." Na versão de um ex conselheiro de companhia atingida, haveria uma outra explicação. "Até procuramos nos aconselhar para processar os bancos, mas simplesmente não havia uma casa de advocacia relevante que não estivesse conflitada. Todas já advogavam para os bancos."
Responsabilidades
Se uma sucessão de erros levou ao desastre, como avaliam muitos dos participantes do episódio, não foi isso o que entrou para a história. Os casos de Sadia e Aracruz foram amplamente noticiados dez anos atrás e, neles, os CFOs das duas empresas, Adriano Ferreira e Isac Zagury, respectivamente, foram considerados os grandes culpados por terem fechado os contratos e escondido os riscos de seus superiores e também dos conselhos de administração. Assim como os dois, outros CFOs foram demitidos na época, como a executiva Ana Elwing, que dirigia a área financeira da Vicunha Têxtil.
O episódio representou o fim da carreira de executivo financeiro para Zagury e também para Ana Elwing. Enquanto ele esteve no centro do caso mais barulhento de todos e se tornou recluso, ela optou por dar uma virada, disposta a nunca mais trabalhar com números. Cursou psicologia na Universidade de São Paulo e tem clinicado ainda de forma tímida desde o ano
passado. Já Adriano Ferreira, com 39 anos à época, teve a decolagem de sua promissora carreira interrompida. Um ano depois de ser demitido da Sadia, assumiu o posto de executivo financeiro de uma companhia menos relevante, a fabricante de motocicletas Kasinski. Desde 2014 trabalha na Odebrecht Transport.
"Colocar toda a culpa nos CFOs foi injusto. Porque as empresas tinham presidentes, comitês, conselhos", diz um ex-executivo. A CVM processou também conselheiros nos três casos. Fechou acordos no caso de Aracruz, em 2012, e Vicunha, em 2015, envolvendo essencialmente o pagamento de multas. Na Vicunha, três conselheiros foram acusados, incluindo Ricardo
Steinbruch. Ana Elwing foi também inabilitada para atuar em companhia aberta por três anos. Na Aracruz, com 17 acusados, a investigação da CVM apontou falhas na estrutura de governança e na atuação de executivos e conselheiros. Segundo a autarquia, a diretoria financeira da Aracruz não possuía conhecimento necessário às operações com derivativos contratados com os bancos. A CVM destacou em sua acusação que o dever de diligência dos administradores inclui a qualificação, ou seja, eles deveriam ter se preparado para suas funções.
Já no caso da Sadia, 10 dos 14 acusados, entre executivo e conselheiros, foram condenados pela autarquia. As multas dos conselheiros ficaram por conta da companhia. Adriano Ferreira teve que pagar multa e também foi inabilitado.
O desmonte
A quebra do Lehman Brothers fez com que as empresas que tentavam se equilibrar, apostando numa reversão do câmbio, perdessem as esperanças. A partir daí, o problema que estava circunscrito às diretorias financeiras, vazou. Aos poucos, algumas empresas começaram a exercer pressão sobre o governo para que o Banco Central vendesse dólares das reservas
internacionais para baixar a cotação e ajudar as empresas a sair das posições a um custo menor. A pressão era feita por meio dos ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento e também pelo BNDES, canais tradicionais de interlocução com o empresariado. Num primeiro momento, o BC fez leilões de linha, mas isso não resolvia o problema de quem tinha se enforcado com
os derivativos, e a pressão continuou.
Para a diretoria do BC, não era aceitável qualquer solução que lembrasse uma repetição do episódio dos bancos Marka e FonteCindam, quando, na maxidesvalorização do real, em 1999, o Banco Central socorreu os dois bancos, que tinham apostas agressivas na manutenção do câmbio na BM&F.
"Começou a se delinear um quadro muito comum em todo começo de crise: cada banco queria salvar o seu lado antes, o que inviabilizaria o salvamento do conjunto", lembra uma pessoa que estava no governo na época. "No caso de um salve-se quem puder, a inadimplência poderia disparar e virar uma crise sistêmica de crédito", completa o ex-integrante do governo.
Houve, então, um movimento incentivado pelo governo para que os bancos tentassem renegociar de forma coordenada. Tal lógica voltaria a ser aplicada nas renegociações de dívida que ocorreram na esteira da Operação Lava-Jato, principalmente com a Odebrecht.
Conforme os contratos de derivativos foram encerrados, restavam as dívidas para renegociar. "Chegamos a dar linhas de crédito a 100% do CDI por 15 anos. Os bancos subsidiaram clientes", recorda-se o executivo de uma instituição local. Ainda assim, a crise dos derivativos deixou um rastro de inadimplência na carteira de crédito do sistema. Para muitas empresas, só o alongamento de prazos e novas linhas de crédito não foram suficientes. Era preciso capitalizar as empresas com balanços mais machucados. Nessa etapa, o BNDES teve papel relevante. No caso da Aracruz e do Bertin, o banco fez aportes bilionários para que as empresas pudessem ser compradas pelos concorrentes VCP e JBS, respectivamente. Muitas usinas sucroalcooleiras também receberam o suporte do banco.
Lições
Assim como nos Estados Unidos, à medida que a crise se avolumava por aqui, as deficiências de controle e regulatórias que permitiram tamanha exposição ao risco ficaram evidentes. E, na sua sequência, algumas medidas foram adotadas para tentar evitar uma repetição. O papel dos conselhos de administração foi questionado a partir de então. Algumas empresas, como o grupo Votorantim, criaram um comitê de risco e revisaram suas políticas financeiras. O grupo também passou a divulgar resultados financeiros trimestrais, seguindo o padrão de companhias abertas.
Em dezembro de 2008 a CVM passou a exigir, por meio da instrução 475, que as companhias de capital aberto apresentem em seu balanço informações sobre todos os instrumentos financeiros, não apenas derivativos. Sob essa nova regra, Sadia, Aracruz e Vicunha não teriam conseguido montar posições tão grandes sem serem notadas e questionadas por acionistas, credores e reguladores.
Dentro dos bancos, entrou na ordem do dia a questão da chamada "suitability", ou seja, a obrigatoriedade de ter políticas que assegurem que determinado produto é adequado (suitable) para determinado cliente. O Itaú passou a exigir que produtos mais complexos e arriscados sejam discutidos com o alto comando das empresas clientes. O BC também passou a demandar que os bancos reportassem posições em derivativos, enquanto Anbima e BSM apertaram as normas de autorregulação. Uma das mudanças mais relevantes foi a criação, em 2010, da Central de Exposição a Derivativos, a CED, para centralizar e consolidar informações sobre os contratos de derivativos fechados pelas empresas. A CED é uma iniciativa da Febraban e da BM&FBovespa e permite que as instituições financeiras tenham acesso às informações consolidadas.
"Uma crise como a de 2008 não aconteceria hoje, com todos os controles que foram criados", opina o presidente de um banco estrangeiro. O diretor de um banco local deixa a dúvida no ar ao dizer que a CED tem pontos a melhorar. "Num evento como o da Aracruz, os bancos dificilmente conseguiriam ter uma visão da exposição da empresa, porque os maiores grupos preferem não informar seus números à central."
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