Um instrumento constitucional de concretização desta função permanente de ponderação de valores, que, em termos absolutos, se contradiriam, Senhor Presidente, é precisamente, na ordem econômica, a competência do Estado para intervir como agente normativo e regulador da atividade econômica, expressamente legitimado pelo artigo 174 da Constituição, que não se reduz, data venia, a autorizar o papel repressivo do abuso do poder econômico, previsto num dos incisos do artigo 173: a meu ver, essa atividade normativa e regulatória compreende, necessariamente, o controle de preços, que, mostra Comparato, tanto se pode manifestar na fixação de preços mínimos, para estimular determinado setor da economia, particularmente em períodos recessivos, como na fixação de preços máximos ou como se cuida, no caso, no estabelecimento de parâmetros de reajuste. Não excluo dessa atividade regulatória e, conseqüentemente, desta possibilidade de controle de preços, nenhum setor econômico, Senhor Presidente. Mas, também na linha do voto do eminente relator, penso que mais patente se torna a legitimidade dessa intervenção, quando se trata de atividades abertas à livre iniciativa, porém, de evidente interesse social, porque situadas em área fundamental da construção da ordem social projetada na Constituição de 1988. (Ministro Sepúlveda Pertence)
Volto a dizer que não nego possa haver exploração mercantilizada do ensino; mas se existe é por tolerância e complacência da Administração Pública. (Ministro Paulo Brossard)
No julgamento da Medida Cautelar 1.657, na qual se discutia a legalidade do fechamento de uma fábrica de cigarros por não pagamento de tributos, o STF decidiu que esse fechamento era legal, sim. Os Ministros argumentaram que o mercado tabagista tem que ser altamente tributado mesmo, e se a empresa não pagar deve perder sua autorização estatal para funcionar. O Ministro Cezar Peluso exaltou a função extrafiscal[7] da tributação do cigarro. O Ministro Eros Grau reconheceu que "a União fica com praticamente três quartos do preço que se paga por uma carteira de cigarro", mas achou isso muito normal, porque, para ele, "há aí uma atividade sujeita a regime especial (...), porque envolve risco à saúde". O Ministro Carlos Ayres Britto disse o seguinte:
A atividade tabagista, no plano industrial e mercantil, é delicada mesmo. Ela é tão especial que reclama um regime tributário igualmente especial ? aliás, como fez esse Decreto nº 1.593. Porque, pelos efeitos nocivos à saúde dos consumidores do tabaco, é um tipo de atividade que muito dificilmente se concilia com o princípio constitucional da função social da propriedade.
Claro que há o aspecto estritamente econômico e também do emprego, mas uma função social mais consentânea com os valores outros perpassantes da Constituição é de difícil conciliação com a atividade tabagista nesse plano da industrialização, da comercialização e do consumo.
Por outra parte, ela parece mesmo se contrapor a uma política pública explícita na Constituição Federal. Quero me referir ao artigo 196, caput, que faz da saúde pública um dever do Estado, exigente de políticas sociais e econômicas de redução do risco da doença e de outros agravos à saúde. Ou seja, há uma política pública de defesa da saúde expressa na própria Constituição Federal, que parece, também, de difícil conciliação com esse tipo de indústria, de comércio e de consumo tabagista.
Em última análise, quero dizer que o voto do Ministro Cezar Peluso me parece homenagear, servir melhor à Constituição na sua axiologia. E Sua Excelência não se furtou de encarar o tema à luz de outros princípios constitucionais: o da livre iniciativa e o da livre concorrência. Aqui, quem atua nessa faixa de mercado tem a obrigação de se circunscrever, de se manter nos rigorosos marcos da tributação, porque ela cumpre uma função obrigatoriamente extrafiscal. Por isso que o IPI é marcado pela seletividade em função da essencialidade do tributo.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.950, que tratava da constitucionalidade de lei que assegura meia-entrada a estudantes em eventos culturais, esportivos etc., o STF decidiu assim:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.844/92, DO ESTADO DE SÃO PAULO. MEIA ENTRADA ASSEGURADA AOS ESTUDANTES REGULARMENTE MATRICULADOS EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO. INGRESSO EM CASAS DE DIVERSÃO, ESPORTE, CULTURA E LAZER. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE A UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS E O DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO ECONÔMICO. CONSTITUCIONALIDADE. LIVRE INICIATIVA E ORDEM ECONÔMICA. MERCADO. INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA. ARTIGOS 1º, 3º, 170, 205, 208, 215 e 217, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL.
1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais.
2. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170.
3. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da "iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.
4. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição]. Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário.
5. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes.
6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
No voto que conduziu a decisão acima transcrita, o Ministro Eros Grau — ele, mais uma vez! — afirmou o seguinte:
É necessário considerarmos, de outra banda, como anota Avelãs Nunes, que a intervenção do Estado na vida econômica consubstancia um redutor de riscos tanto para os indivíduos quanto para as empresas, identificando-se, em termos econômicos, com um princípio de segurança: "A intervenção do Estado não poderá entender-se, com efeito, como uma limitação ou um desvio imposto aos próprios objectivos das empresas (particularmente das grandes empresas), mas antes como uma diminuição de riscos e uma garantia de segurança maior na prossecução dos fins últimos da acumulação capitalista". Vale dizer: a chamada intervenção do Estado no domínio econômico é não apenas adequada, mas indispensável à consolidação e preservação do sistema capitalista de mercado. Não é adversa à lógica do sistema, que em verdade não a dispensa como elemento da sua própria essência.
Assim é porque o mercado é uma instituição jurídica. Dizendo-o de modo mais preciso: os mercados são instituições jurídicas. A exposição de Natalino Irti é incisiva: o mercado não é uma instituição espontânea, natural — não é um locus naturalis — mas uma instituição que nasce graças a determinadas reformas institucionais, operando com fundamento em normas jurídicas que o regulam, o limitam, o conformam; é um locus artificialis. O fato é que, a deixarmos a economia de mercado desenvolver-se de acordo com as suas próprias leis, ela criaria grandes e permanentes males. "Por mais paradoxal que pareça — dizia Karl Polanyi — não eram apenas os seres humanos e os recursos naturais que tinham que ser protegidos contra os efeitos devastadores de um mercado auto-regulável, mas também a própria organização da produção capitalista". O mercado, anota ainda Irti, é uma ordem, no sentido de regularidade e previsibilidade de comportamentos, cujo funcionamento pressupõe a obediência, pelos agentes que nele atuam, de determinadas condutas. Essa uniformidade de condutas permite a cada um desses agentes desenvolver cálculos que irão informar as decisões a serem assumidas, de parte deles, no dinamismo do mercado. Ora, como o mercado é movido por interesses egoísticos ? a busca do maior lucro possível ? e a sua relação típica é a relação de intercâmbio, a expectativa daquela regularidade de comportamentos é que o constitui como uma ordem. E essa regularidade, que se pode assegurar somente na medida em que critérios subjetivos sejam substituídos por padrões objetivos de conduta — padrões definidos no direito posto pelo Estado — implica sempre a superação do individualismo próprio ao atuar dos agentes do mercado.
[...]
Vê-se para logo, destarte, que se não pode reduzir a livre iniciativa, qual consagrada no artigo 1º, IV, do texto constitucional, meramente à feição que assume como liberdade econômica ou liberdade de iniciativa econômica.
Dir-se-á, contudo, que o princípio, enquanto fundamento da ordem econômica, a tanto se reduz. Aqui também, no entanto, isso não ocorre. Ou ? dizendo-o de modo preciso ?: livre iniciativa não se resume, aí, a "princípio básico do liberalismo econômico" ou a "liberdade de desenvolvimento da empresa" apenas ? à liberdade única do comércio, pois. Em outros termos: não se pode visualizar no princípio tão-somente uma afirmação do capitalismo.
O conteúdo da livre iniciativa é bem mais amplo do que esse cujo perfil acabo de debuxar.
Ela é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da "iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.
Daí porque, de um lado, o artigo 1º, IV, do texto constitucional enuncia como fundamento da República Federativa do Brasil o valor social e não as virtualidades individuais da livre iniciativa; de outro, o seu art. 170, caput, coloca lado a lado trabalho humano e livre iniciativa, curando porém no sentido de que o primeiro seja valorizado.
[...]
No caso, se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição]. Ora, na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. A superação da oposição entre os desígnios de lucro e de acumulação de riqueza da empresa e o direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, como meio de complementar a formação dos estudantes, não apresenta maiores dificuldades.
O mesmo raciocínio foi usado para justificar outra decisão do STF — Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.512 —, a qual considerou constitucional lei que garantia meia-entrada a doadores de sangue.
No julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada[8] 171-2, o STF chancelou medida estatal que proibiu a importação de pneus usados, alegando que o princípio da livre iniciativa não pode se sobrepor ao direito de todos a um meio ambiente equilibrado, o qual configura, segundo a doutrina dominante na atualidade, um "direito fundamental de terceira geração"[9].
No julgamento do Recurso Extraordinário 349.686, sob o fundamento de que "o exercício de qualquer atividade econômica pressupõe o atendimento aos requisitos legais e às limitações impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia", e de que "o princípio da livre iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor", o STF chancelou medida estatal que proibiu o comércio de GLP, gasolina e álcool por parte dos chamados transportadores-revendedores-retalhistas, garantindo, assim, um mercado cativo às grandes distribuidoras (Petrobras, inclusive).
Pode-se citar, também, o julgamento do Recurso Extraordinário 603.583, no qual o STF chancelou a lei que proíbe pessoas não filiadas à OAB de exercerem livremente a profissão de advogado.
Conclusão
Alguns excertos de votos transcritos acima são realmente preocupantes para qualquer pessoa que acredita no livre mercado e nos seus princípios basilares. Os Ministros do STF provavelmente não conhecem a obra dos grandes autores liberais, notadamente os membros da Escola Austríaca de Economia.
Os argumentos usados nos votos não passam, na maioria das vezes, de clichês impregnados daquilo que Ludwig von Mises classificou de
"mentalidade anticapitalista". Há passagens que, como visto acima, chegam ao absurdo execrar o lucro! Por outro lado, o endeusamento do estado é assustador! Enfim, tratando-se de uma Corte Suprema, era de se esperar pelo menos um pouco mais de erudição na exposição dos argumentos.
Para o STF, livre iniciativa e livre concorrência não existem. Há, na verdade, a iniciativa regulada e a concorrência regulada, que são absolutamente contrárias ao livre mercado genuíno. E o pior é que, quanto menos livre mercado temos, mais ele é culpado pelos estatistas por todos os males que nos assolam.
[1] Em artigo recente, intitulado "Como o STF chancelou o monopólio estatal dos Correios", tentei mostrar como alguns de nossos juízes supremos — notadamente Joaquim Barbosa, o endeusado relator do mensalão — desconhecem lições elementares da boa ciência econômica. Em outro artigo, intitulado "A nova lei antitruste brasileira: uma agressão à livre concorrência", eu tentei mostrar como a idéia de regulação estatal da concorrência é absurda e claramente antimercado.
[2] Se alguém se arriscar a fazer um estudo como este na jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho), o resultado será ainda pior.
[3] É preciso registrar que em quase todos os casos que listarei o Ministro Marco Aurélio foi voto vencido, a exemplo do que ocorreu também no caso em que o STF julgou o monopólio dos Correios. Em muitos de seus votos ele adota postura crítica ao estado intervencionista e demonstra apreço pelo livre mercado.
[4] ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercelia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[5] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[6] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1989.
[7] Os tributos são extrafiscais quando não se limitam à sua função arrecadatória, servindo também para o estado atingir outros fins, como estimular ou inibir certas atividades. No caso do cigarro, usa-se uma alíquota altíssima de IPI para inibir o seu consumo, sob os aplausos dos entusiastas do estado-babá.
[8] No Brasil, o estado possui uma posição mais do que privilegiada no direito processual. Além de ter prazos mais longos do que os particulares, o estado tem um mecanismo "político" para rever decisões judiciais contrárias ao seu interesse: são os famosos "pedidos de suspensão". Enquanto um particular só consegue combater uma decisão que lhe foi desfavorável por meio dos recursos cabíveis, nos quais tem que se ater ao debate jurídico da questão, o estado pode se valer desses absurdos "pedidos de suspensão", alegando questões "políticas" genéricas como violação da ordem pública, da saúde pública, da segurança pública, da economia pública etc. Não raro esses pedidos são bem sucedidos. Afinal, como bem alerta sempre o professor Hans-Hermann Hoppe, é o estado quem julga o estado...
[9] Para um verdadeiro liberal, os únicos direitos fundamentais legítimos são os de primeira geração, como liberdade, vida e propriedade. São direitos negativos, que não exigem um fazer de ninguém para serem assegurados. Os direitos fundamentais de segunda geração (direito à saúde, direito ao emprego, direito à educação, direito à moradia etc.), consagrados pelo estado de bem-estar social (Welfare State), e os direitos fundamentais de terceira geração (direito ao meio ambiente equilibrado etc.), por sua vez, são direitos positivos, representando, em si mesmos, a negação dos direitos de primeira geração, por exigirem que o estado viole o direito de propriedade das pessoas para assegurá-los. Eles são, pois, a perversão da Lei, como disse Bastiat em sua magnifica obra: "a Lei perverteu-se por influência de duas causas bem diferentes: a ambição estúpida e a falsa filantropia". Esses supostos direitos de segunda e terceira gerações não caem do céu. Por isso Bastiat dizia que "a ilusão dos dias de hoje [e olhem que ele viveu de 1801 a 1850] é tentar enriquecer todas as classes, à custa uma das outras. Isto significa generalizar a espoliação sob o pretexto de organizá-la": BASTIAT, Frédéric. A Lei. 3ª ed. São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2010. Será que nossos Ministros já leram Bastiat?
https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1475