8 – Liberdade Comercial (Trade Freedom)
Apesar dos eleitores típicos do neoliberalismo e alguns de seus porta-vozes na mídia estarem traindo a defesa do livre-comércio apoiando o protecionista Trump, o Brexit e incentivando o desmonte de acordos de livre-comércio como a União Européia, NAFTA e Tratado Trans-Pacífico, seus autores efetivamente são opositores das barreiras alfandegárias, algo que não é acompanhado por seus adversários na democracia representativa. Apesar de não existir corrente política contrária à existência do comércio, de fato os neoliberais encabeçam a defesa de que a redução de barreiras para importação/exportação é uma medida intrinsecamente boa.
9 – Liberdade de Investimento (Investment Freedom)
Efetivamente, os neoliberais são os grandes advogados do livre fluxo de capitais e investimentos.
10 – Liberdade Financeira (Financial Freedom)
A ausência do governo no setor bancário é de fato uma bandeira que distingue os neoliberais.
4. Critérios que não poderiam faltar em um ranking de liberalismo econômico (de acordo com o que pregam os neoliberais), mas não existem no índice
O presidente da Heritage Foundation Ed Feulner com o vice-presidente dos EUA Dick Cheney em 2006. Foto: Charles Geer.
Além da existência de itens que não representam adequadamente o receituário neoliberal e distorções evidentes nos itens relacionados às políticas defendidas por militantes que usam índices de liberdade econômica, é gritante a ausência de temas centrais defendidos por seus autores, eleitores e governos.
Não existe no ranking nenhum item que trate da participação do Estado na economia em relação ao PIB, ou alguma proporção entre a participação das empresas privadas e estatais/economia mista na economia local, o que distorce totalmente o resultado de países em que a atuação do Estado se dá por meio de suas companhias (os casos mais gritantes são Singapura[3f] e os países exploradores de petróleo do Oriente Médio, cuja a atividade econômica assim como a receita do governo são extremamente dependentes das estatais petrolíferas).
Uma importante atividade econômica de empresas estatais é a principal razão dos baixos impostos encontrados em diversos países, como Singapura, Arábia Saudita, Qatar e Kuwait. Sendo, portanto, a presença de um item tratando dessa questão necessária para corrigir falhas do item “Liberdade Fiscal”.
Não há, também, nenhum item que trate da questão dos serviços públicos. A privatização dos serviços públicos (saúde, educação, segurança, dentre outros) é uma das principais bandeiras do neoliberalismo, sendo a defesa da maior eficiência da iniciativa privada exaltada sistematicamente por aqueles alinhados com seus dogmas. Com a extensa campanha que fazem contra a eficiência estatal em prestar serviços públicos, torna-se totalmente incoerente o uso de um índice que nada diz a respeito de uma das principais bandeiras neoliberais para justificar a adoção de suas políticas. Diversos países bem localizados no índice de liberdade econômica (como Austrália, Nova Zelândia e Singapura) se destacam pela forte presença estatal nos serviços públicos.
Outro ponto que não poderia faltar é a respeito da liberdade cambial. É comum entre economistas neoliberais a defesa do fim dos Bancos Centrais ou sua “independência” em relação ao governo e o combate à manipulação cambial, que consideram prejudicial mesmo no caso em que as moedas são desvalorizadas para aumentar a competitividade no comércio global. O subitem presente na “liberdade de investimentos” não representa essa discussão, apesar de ter relação com o assunto.
Os 3 itens citados anteriormente não poderiam faltar em um índice que é usado para legitimar a aplicação de políticas neoliberais, pois é notório e bem sabido que os principais opositores dessas políticas na esfera econômica são os que seguem uma linha derivada do keynesianismo, onde comumente se defende um papel relevante do Estado nestes itens (serviços públicos, setores estratégicos e política cambial controlada pelo Estado condizente com uma estratégia de desenvolvimento do país).
Não há como utilizar na discussão econômica um índice que sequer avalia os principais pontos de discordância entre aqueles que usam o índice para defender liberalismo econômico e os críticos deste modelo.
5. Ranking considerando apenas os itens relacionados ao liberalismo econômico
Desconsiderando as falhas apresentadas nas seções 3 e 4 deste artigo e sabendo que isso causa fortes distorções em países extremamente dependentes de empresas estatais como Singapura e as potências petrolíferas, assim como nos países em que o Estado está fortemente presente nos serviços públicos (caso de Nova Zelândia, Austrália, Canadá e novamente Singapura), faremos um exercício que se trata de se repetir o mesmo índice de liberdade econômica da Heritage Foundation, considerando apenas os 6 itens apresentados no terceiro tópico – Liberdade Fiscal (Fiscal Freedom), Gasto Governamental (Government Spending), Liberdade Trabalhista (Labor Freedom), Liberdade Comercial (Trade Freedom), Liberdade de Investimento (Investment Freedom) e Liberdade Financeira (Financial Freedom) – para avaliar qual seria o resultado de tal ranking.
Conferir tabela do ranking considerando apenas liberdade econômica
Não é surpreendente notar que o resultado é muito mais próximo da realidade daquilo que o ideário neoliberal defende do que o ranking original: Diversos países com longa tradição social-democrata (como França, Noruega, Suécia, Dinamarca, Bélgica) passam a figurar na metade “menos livre” do mundo, estando a França em uma das últimas posições (156º lugar de 178 países).
Também nota-se uma forte evolução em “liberdade econômica” de países ex-socialistas que passaram por grandes reformas liberais desde a década de 90, como Geórgia, Armênia, Azerbaijão e Albânia, mas permanecem pobres.
Outro fato evidente é a forte subida de paraísos fiscais pobres, como o Panamá e o Paraguai, que visivelmente estão bem próximos do receituário neoliberal mas eram penalizados pelo simples fato de estarem em condição de pobreza.
6. Ranking considerando apenas os itens não relacionados ao liberalismo econômico
Como exercício complementar, faremos outro ranking, apenas com os itens expurgados por serem defendidos também pelos opositores do neoliberalismo apresentados no segundo tópico.
Conferir tabela do ranking considerando apenas os ítens não relacionados com liberalismo
O resultado é bastante interessante e inclusive esperado: Os países europeus com longa tradição social-democrata estão entre os melhores posicionados no índice que considera somente os pontos que são pacíficos como algo necessário para o desenvolvimento de uma economia em um sistema capitalista.
Considerações finais
O presidente da Heritage Foundation Ed Feulner, o ex presidente dos EUA Ronald Reagan e o casal Rose e Milton Friedman em 1986. Foto: Charles Geer / Heritage Foundation.
Os rankings apresentados nos quinto e sexto tópicos por si só mostram como os índices de “liberdade econômica” seriam impactados de forma bastante intensa se fossem fidedignos aos princípios defendidos pelos neoliberais, o que implica na impossibilidade de seu uso para defender suas políticas.
A expectativa é que um “índice de liberdade econômica” verdadeiramente alinhado com seu receituário resulte em um ranking no qual os líderes seriam os paraísos fiscais. Mesmo entre os paraísos fiscais, porém, é provável que os mais desenvolvidos sejam classificados como “menos livres”, justamente pela forte presença do Estado nos serviços públicos e infraestrutura (caso da Suíça). Outro resultado bastante provável, é que países com longa tradição social-democrata como Noruega, Suécia, Dinamarca, Países Baixos, Islândia, Bélgica, Alemanha, entre outros, sigam a trajetória de queda vertiginosa no índice identificada no quinto tópico, fazendo companhia à França nas últimas posições.
Enquanto o debate econômico não passa pelo uso de índices que realmente representam aquilo que se deseja defender, pouco pode-se fazer além de conjecturas. Não é objetivo deste artigo elaborar um novo índice que reflita o ideário neoliberal, somente explicar por que os “índices de liberdade econômica” apresentam resultados incoerentes, classificando nas primeiras posições países que adotaram receituário diametralmente oposto àqueles que o utilizam como argumento, além de um aumento no índice não possuir qualquer correlação com desenvolvimento econômico.
Desta forma, uma célebre frase do ex-presidente Itamar Franco resume bem o uso de “índices de liberdade econômica” para legitimar a aplicação de políticas neoliberais: “Os números não mentem, mas os mentirosos fabricam números”.
Referências
[1] The Guardian – Neoliberalism: the ideology at the root of all our problems (versão traduzida pela Voyager aqui)
[2] Left Business Observer – Laissez-faire Olympics (versão traduzida pela Voyager aqui)
[3abcdef] Voyager – 10 fatos sobre Singapura que invalidam os índices de liberdade econômica
[4ab] Heritage Foundantion – Methodology
[5] Transparency International – CORRUPTION PERCEPTIONS INDEX 2014: IN DETAIL
[6] Transparency International – CORRUPTION PERCEPTIONS INDEX 2016
[7] OECD – Employment in Public Sector
[8] Voyager – O Livre Mercado é a chave para a prosperidade? A Noruega prova que não.
[9] Law of Work – Most Highly Unionized Countries Top ‘Happiest Countries” List, Again. Why?
[10] Parlamento Europeu – Legislação do mercado de trabalho
[11] BBC – Na Dinamarca, Lula confere modelo trabalhista flexível
• Heritage Foundation – Index of Economic Freedom 2017
https://voyager1.net/economia/a-farsa-dos-indices-de-liberdade-economica/