Restante do texto:
Mas a política de sanções tem, sempre, caráter contraproducente. Quando se impõem sanções, não há vencedores. E, nesse caso especial, a Rússia está de um lado; e EUA, Europa e outros estados pró-ocidente estão do lado oposto.
Obviamente, alguém vai sofrer mais, outros sofrerão menos. Os EUA, distantes da Rússia em termos geográficos, está conduzindo uma política externa “norte-americanista” e independentemente da política externa da UE. Ao mesmo tempo, porque optou por confrontar a Rússia econômica e politicamente, a Casa Branca exige que a Europa a apoie; ao fazê-lo, a Casa Branca empurra os estados-membros da UE para uma posição muito precária.
Como se não bastasse, quando se comprovam as consequências econômicas e políticas obviamente negativas para a Europa, vê-se que a atividade da “comunidade de inteligência” dos EUA, que já infligiu outras perdas diretas aos interesses da segurança europeia, só faz jogar mais gasolina à fogueira. Os serviços especiais dos EUA estão manipulando a opinião pública mundial, servindo-se para isso dos meios globais de comunicação e da atividade da imprensa-empresa global e seus jornalistas. Para ter certeza, basta lembrar o papel que se acredita que tenham tido vários agentes pró-guerra, operantes nos jornais e redes de televisão.
Mais um perigo-provocação: Revoluções Coloridas e Guerras Híbridas
O número de casos de intervenção direta em estados soberanos, pelos EUA e seus aliados próximos, aumentou nos últimos tempos. Washington já declarou abertamente o direito que supõe ter para usar unilateralmente a força em qualquer lugar do mundo, para defender seus “interesses vitais”. A interferência militar tornou-se norma – apesar do lastimável resultado de todas as operações de força que os EUA tentaram nos últimos 70 anos.
Onde quer que se constate presença militar dos EUA, logo se veem instabilidade, calamidades, hostilidade e derramamento de sangue. Washington criou mais estados falidos nos últimos anos, do que jamais antes, durante toda a Guerra Fria 1.0.
Madame Sharon Tennison, presidenta do Centro para Iniciativas Cidadãs, nos EUA, tem pedido insistentemente que os governantes dos EUA não façam mais guerras distantes, não mais desestabilizem governos eleitos, não demonizem outros líderes e países, e que parem de usar força militar para intervir por todos os cantos, pelo planeta. E disse, em termos eloquentes:
Todos os países que os EUA invadiram nos últimos 12 anos estão hoje em situação muito pior do que estavam antes de coturnos e armas norte-americanas aparecerem na terra deles.
Em carta que escreveu a Nancy Pelosi, ex-candidata ao governo dos EUA, Sharon Tennison diz também que jamais antes vira coisa mais carregada de erros e distorções, mais mal intencionada e mais perigosa que a atual política dos EUA contra a Rússia. E propõe perguntas bastante lógicas: O que fariam os EUA se a Rússia pusesse as forças armadas e todos os mísseis do Pacto de Varsóvia ao longo da fronteira EUA-México e EUA-Canadá? O que farão os EUA quando, sim, já há possibilidade real de a Rússia instalar armas em Cuba?
À parte empregar força militar massiva para derrubar “governos pouco amigáveis” como na Líbia, no Iraque (e em inúmeros outros países no passado, como, dentre outros Guatemala, Cuba, Vietnã do Norte, Coreia do Norte...), os EUA também usam massivamente seus agentes de serviços secretos, sempre que parece aos EUA que usar força militar seria ou caro demais ou criminoso demais (consideradas as infrações da lei internacional). Vários casos de tentativas para encenar “revoluções coloridas” no espaço pós-soviético são exemplos flagrantes desses “esquemas”. Já se sabe, dito diretamente pelo Comando de Operações Especiais dos EUA, que EUA estão prontos para provocar guerras secretas e não declaradas servindo-se de “rebeldes” contra vários governos legalmente constituídos, e explorando métodos de guerra econômica, política, militar, psicológica contra qualquer tipo de adversário.
Um dos métodos já explorados pelos EUA é substituir governos mediante eleições, nas quais se mobilizam quantidades gigantescas de dinheiro, para comprar votos, comissões eleitorais, e dali até ‘a cabeça’, servindo-se dos serviços de jornalistas cuidadosa e especificamente treinados, agências de notícias, fraudes nas urnas ou apurações dos votos e distorções nos números finais de votos contados.
O processo foi exposto em tons vívidos pelo embaixador dos EUA na Rússia, Michael McFaul, antes de ser nomeado embaixador e antes de ter trabalhado como Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA – quer dizer, quando ainda era professor na Stanford University e estudava a Rússia.
Na aula pública que ministrou num país do leste europeu há alguns anos, Michael McFaul revelou abertamente ao público presente, o número de agências dos EUA (p. ex., USAID) que davam dinheiro a ONGs ucranianas e a empresas-imprensa (jornais impressos, televisão e grupos ativos nas “redes sociais”) na Ucrânia, para que pusessem no governo o presidente – pró-ocidente – Viktor Youschenko, em 2004, que pregava a imediata integração da Ucrânia à Otan. O prof. McFaul conhecia a específica quantia de dinheiro canalizado para ONGs ucranianas já existentes ou especificamente criadas para a finalidade de interferir nas eleições presidenciais de 2004 na Ucrânia, sob o “lema” de “promover a sociedade civil” naquele país. A CIA também abasteceu com recursos substanciais a oposição russa, servindo-se de ONGs russas e de outras nacionalidades implantadas na Rússia para impedir que o presidente Putin fosse eleito em 2012.
O padrão de interferência mais recentemente posto em prática é o que se viu na Ucrânia. A ideia de usar força aérea para derrubar o presidente Viktor Yanukovich jamais foi discutida ou interessou ao Pentágono. A principal tarefa da CIA e de outros serviços secretos foi derrubá-lo e substituí-lo servindo-se de outros padrões de ação, inclusive operações clandestinas dentro da Ucrânia. O método mais recentemente utilizado para golpe de mudança de governo foi, na Ucrânia, incitar “tumultos de praça” massivos (“manifestações em praças centrais de grandes cidades”). Por esse padrão, treinam-se e pagam-se “manifestantes pacíficos” que se reúnem, no primeiro movimento, para protestar contra um ou outro ato de corrupção, a má qualidade dos serviços públicos, crimes de vários tipos etc.. Quando os protestos pacíficos na Praça Maidan e ruas próximas em Kiev começaram a dar sinais de exaustão, os serviços secretos da Ucrânia (SBU) distribuíram atiradores treinados pelo alto de prédios em torno da praça, para atirar a esmo em qualquer pessoa, dos dois lados das barricadas, tanto contra manifestantes quanto contra policiais.
Os serviços secretos dos EUA estiveram muito amplamente envolvidos na “produção” e implantação de um governo fracassado, mas pró-ocidente, em Kiev, em fevereiro passado: fontes públicas dizem que foram gastos US$ 10 bilhões em toda a operação, e que ainda mais dinheiro foi levado para Kiev, por malotes diplomáticos, no final de 2013 e início de 2014. Um comentário crítico sobre a CIA dos EUA: a Agência é capaz de inventar, do nada, um golpe; é capaz de fazer toda a engenharia do golpe. Mas não é capaz de prever o que acontecerá depois. A tragédia na Ucrânia é o mais vívido exemplo dessa ignorância.
Washington coordenou os tumultos da Praça Maidan em fevereiro passado e levou ao poder personalidades de Kiev nada experimentadas no governo, não profissionais. Funcionário aposentado da CIA confessou, no verão passado, que o planejamento de uma operação clandestina desse tipo exigiria, no mínimo, um ano. O ocidente não se deu o tempo necessário. Agora, diz que não compreende que o povo do Donbass tenha decidido fazer a história andar noutra direção, que não é a que a CIA “planejara”. Ninguém nunca mais conseguirá “reunificar” a Ucrânia. Nunca mais. O sangue derramado foi demasiado, morreu gente demais, há destruição e sofrimento demais, por lá. Acumularam-se quantidades imensas de rejeição, de antipatia. O Donbass simplesmente não quer viver sob o mando da Ucrânia, preso em algemas ucranianas. Querem estado separado, dentro dos limites administrativos de sua própria terra.
Ao pôr no poder seu “íntimo aliado” como presidente da Ucrânia, os serviços secretos dos EUA continuam a manter a Ucrânia como entidade 100% pró-EUA e pró-Otan. Para reforçar os sentimentos anti-Rússia e pró-ocidente na opinião pública naquele país, os serviços secretos dos EUA mantêm lá “instrutores” e “conselheiros” em praticamente todos os ministérios e sessões e departamentos do governo da Ucrânia, todos trabalhando ativamente na guerra de informações contra a Rússia e contra outros países que não apoiaram o golpe sangrento e ilegal em Kiev e no resto da Ucrânia.
Como “método”, é simples: usam a internet para martelar e martelar, por repetição, qualquer notícia falsa ou duvidosa que lhes pareça útil; na sequência, extraem daquelas “notícias” as “conclusões” mais estapafúrdias e de mais longo alcance, que mais interessem aos EUA; passo seguinte, aquelas “conclusões” são apresentadas aos políticos dos EUA e ao público em geral como se fossem “fato”, vale dizer, como se fossem a realidade. Exemplo recente desse “golpe” foi a “notícia”, distribuída pelas Forças de Segurança da Ucrânia, segundo a qual cadetes da Academia Russa de Artilharia (ARA, desativada há seis anos) estariam atacando no Donbass.
Outra história: documentos falsos de identidade russa foram exibidos a “jornalistas”, como prova de que haveria soldados russos comandando a “agressão contra a Ucrânia”.
Incompetência, porque o serviço secreto ucraniano SBU e a CIA dos EUA tinham de saber que aqueles documentos foram cancelados há muitos anos. No verão passado, o SBU distribuiu nota oficial na qual afirmava que Vasiliy Geranin, suposto oficial ucraniano, teria tido uma conversa por telefone com um resistente, no Donbass, de nome Igor Bezler. Mas, quando vi a foto do dito “Vasiliy Geranin”, vi que era Musa Khamzatov, que conheço pessoalmente, de nossos contatos no Instituto para Relações Internacionais em Moscou.
Em termos gerais, a CIA manipula as percepções do público sobre o que se passa efetivamente no mundo; interfere na vida privada de alguns líderes mundiais e homens e mulheres “de poder”. No ambiente em que se vive hoje e no que se pode prever para o futuro, os serviços secretos dos EUA têm de parar de intrometer-se em assuntos internos de outros países e na vida pessoal das pessoas. Só assim conseguirão fazer bem feito o que existem para fazer: manter e promover a segurança dos EUA e de seus aliados.
Nesse contexto, pôr-se a ouvir telefonemas e a ler e-mails de praticamente todos os norte-americanos nos EUA e de mais de 30 governantes eleitos em outros pontos do mundo é prática a ser evitada – talvez deva ser proibida? – porque essas práticas agridem as liberdades individuais, direitos humanos fundamentais e a lei internacional.
E como sair do impasse gerado pela Guerra Fria 2.0
Em intervenção na reunião do Club Valdai em Sochi, dia 24 de outubro, o presidente Putin observou que o mundo está menos seguro e mais imprevisível, a cada dia que passa; e que os riscos só fazem aumentar, por todos os lados. Todo o sistema de segurança foi seriamente enfraquecido, fragmentado e deformado. Um diktat unilateral para impor sempre e só os próprios modelos produziu resultado oposto e não gerou mais segurança. Em vez de reduzir e superar conflitos, levou a uma escalada dos conflitos, ao caos sempre crescente, a um apoio sob todos os títulos suspeito garantido a neofascistas e a islamistas radicais.
O mundo é testemunha de mais e mais esforços para fragmentar a situação global, para traçar mais e mais linhas divisórias, para montar coalizões que não obram a favor de coisa alguma, sempre contra quem tenha opinião diferente, com os EUA tentando fabricar a imagem de um inimigo, como se viu nos anos da Guerra Fria, e tentando também impor algum modelo; de fato, qualquer modelo, desde que seja conveniente à perpetuação da “liderança” norte-americana.
Os EUA, depois de se autodeclararem vencedores da Guerra Fria, em vez de manterem a ordem e a estabilidade, puseram-se imediatamente a obrar para destruir o equilíbrio do sistema vigente de segurança. Os autoproclamados “vencedores” da Guerra Fria decidiram reformatar o mundo para aproveitar aos seus próprios interesses e carências “vitais”.
Relatório preparado pelo Instituto Polonês de Relações Internacionais em outubro de 2014 [6] deixou claro que as razões da crise Rússia-Ocidente são mais fundas que algum déficit de confiança ou a falta de canais adequados de comunicações entre as partes. A desconfiança não é resultado de não se compreenderem bem os motivos do outro lado, mas reflete, isso sim, diferenças fundamentais na esfera dos valores e da conceptualização dos interesses entre o ocidente e a Rússia. Infelizmente, daí em diante o Relatório atribui toda a culpa, por tudo, exclusivamente à Rússia. Verdade é que a chance é pequena, praticamente nenhuma, de que se reconstrua a confiança entre o Ocidente e a Rússia, sem que se enfrentem as diferenças reais, fundamentais, que há entre ambos.
Como Jeffrey Tayler, editor de The Atlantic, observou recentemente [7]:
Os EUA embarcam nessa estrada de confrontação [com a Rússia] sem ter mão firmes, equilibradas, de temperança, no volante da Casa Branca; na história moderna, nenhum governo norte-americano jamais se mostrou mais incapaz, mais inepto, nas tratativas com a Rússia. (...) Os norte-americanos estão sendo mandados a uma nova guerra – fria, por enquanto – sem terem nem ideia do que virá como resultado. É imprescindível que todos os norte-americanos perguntem ao governo Obama: “Digam-nos: como terminará isso?.
Falando sério: como terminar isso?
Primeiro. Os EUA e seus aliados na Otan devem parar de reunir exércitos perto das fronteiras da Rússia. O arsenal nuclear tático dos EUA – com toda a infraestrutura relevante e os itens do sistema de mísseis balísticos de defesa – tem de ser removido da Europa e devolvido ao território continental dos EUA. Deve-se desenvolver um novo Tratado de Mísseis Anti-Balísticos, multilateral, que limite o número de interceptores estratégicos. Deve-se elaborar e assinar um acordo CFE qualitativamente novo (CFE-2), entre todos os estados-membros da Otan, incluídos os membros recém admitidos, e a Rússia. Todos devem assinar tratado internacional para banir instalação de quaisquer armas no espaço sideral. E estados nucleares de facto e de jure terão de assumir o compromisso de não usar armas nucleares em nenhum caso, no primeiro ataque. O Novo [tratado] Tratado para Redução de Armas Estratégicas [Strategic Arms Reduction Treaty-4 (START-4)] EUA-Rússia pode ser discutido, desde que todos os itens previamente acordados sejam implementados. EUA e Otan devem considerar a Rússia como sua aliada permanente, não como permanente inimiga.
Segundo. Todas as sanções econômicas e financeiras criadas contra a Rússia devem ser levantadas integralmente e sem demora, porque são medida injusta e ilegítima que infringem princípios da Organização Mundial do Comércio e do comércio justo. A Rússia não tomará quaisquer medidas ou condições que visem ao fim das sanções como fator de troca para que modifique suas posições sobre a crise ucraniana que a Rússia não provocou
Terceiro. A Ucrânia terá de comprometer-se a manter para sempre o status de país não alinhado e não nuclear. O povo do Donbass terá garantido o direito de decidir sobre o próprio futuro – sem agressões ou ações punitivas dentro de suas fronteiras administrativas dentro da Ucrânia. Uma solução pacífica para a crise ucraniana exige não só um cessar-fogo, mas retirada completa de todas as tropas regulares ucranianas e formações irregulares, para fora do território das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk. As autoridades em Kiev devem assinar um pacto de não agressão com aquelas Repúblicas Populares. Kiev deve também compensar todas as perdas humanas e materiais que causou à região de Novorússia – imediatamente e sem quaisquer atrasos.
A elite militar e política dos EUA tem de entender que a Ucrânia é uma espécie de Rubicão geopolítico e político-militar, de onde a Federação Russa não retrocederá e onde de modo algum desistirá de seus princípios fundantes. Ninguém pode intervir, de modo algum, nas próximas eleições no Donbass, que cumprem rigorosamente o que ficou acordado no Acordo de Minsk, marcadas para 4/11/2014 [foram realizadas (NTs)] – assim também, ninguém interveio nas recentes eleições parlamentares realizadas na Ucrânia.
Quarto. Em termos gerais, é chegada a hora de abandonar para sempre, em todas as relações internacionais, todas as ameaças feitas pretextos frouxos e explicações vagas. O presidente Vladimir Putin disse recentemente: [8]
Esperamos que nossos parceiros percebam a futilidade de tentar chantagear a Rússia e que se lembrem das consequências que pode ter, para a estabilidade estratégica, a discórdia entre as duas principais potências atômicas do mundo.
A comunidade mundial como tal deve opor-se com firmeza a qualquer tentativa para ressuscitar os resultados da IIª Guerra Mundial; e deve combater consistentemente a quaisquer formas e manifestações de racismo, xenofobia, nacionalismo agressivo e chauvinismo.
É importante que se organize uma reunião de cúpula EUA-Rússia, necessária e urgente para atacar todos esses problemas e encaminhar essas soluções. Mas não com Barack Obama. É impossível pensar em reunião séria, desse tipo, sob essa presidência.