Você assume que há algo além do dedo a ser visto. Assume que quem não está vendo é um tolo.
Não vejo mal algum em quem, sendo capaz de conceber a Lua, deliberadamente opta por ignora-la. É diferente, por exemplo, de quem nem ousa olhar para o céu e já a despreza, não vendo mais que o dedo.
Se o misticismo não tem vinculação com a realidade externa ao místico, nada há que se debater, certo?
Há que se debater a realidade interna do ateu. O crente, pior do que o ateu, não só atribui à experiência o caráter de revelação objetiva de qualquer coisa externa como também crê em suas alucinações. O ateu, por sua vez, pelo menos se recusa a acreditar nestas pseudo comunicações e interações, mas não consegue ainda dissociar a experiência do sagrado e essas imagens (de superstição, ignorância, alucinação, etc). Enquanto ele mantém essa associação, é incapaz de experimentar o sagrado, e desenvolve uma repulsa irracional por tudo que evoca seus traços. Lembrando que estou falando aqui, o tempo todo, do mau ateu de meu exemplo. Quando a associação é desfeita e o adepto reconhece o sagrado como inerente ao homem (e não externo), ele não tem mais barreiras contra o sagrado em si mesmo. Neste ponto, ele se libertou dos preconceitos e condicionamentos, e pode ser um bom ateu, um bom cristão, um bom budista, um bom maçom e o que for, porque sua estrutura de pensamento é descondicionada.
Subentendido, não - está explícito. Considerando o significado usual do termo: misticismo: inclinação para acreditar em entes e força sobrenaturais. Crença de que o ser humano pode comunicar-se com divindades e afins ou receber delas sinais ou mensagens. Se não é disso que você está falando, convém você explicar exatamente do que é para evitar confusões.
E o que é "acreditar"? O que é "força sobrenatural"? O que são "divindades e afins"? Você tem uma imagem de tudo isso. Quando atacou o misticismo em si sem em nenhum momento ter me perguntado as definições corretas, estava interagindo o tempo todo com a associação que você mesmo faz dessas coisas e, se tudo isso, na sua mente, só significa essas aberrações caricatas e não mais, então você não faz menos do que o seu dever em refutar tudo isso e se declarar um descrente. A experiência "mística" é a experiência contemplativa, intuitiva e pessoal do sagrado. Enquanto o sagrado, no seu arcabouço mental, estiver arraigado dessas figuras externas e assombrosas, ele estará inacessível a você. Quando não estiver mais, a porta entre você e a
contemplatio será uma porta aberta, pela qual passará livremente, e aí você pode ser cristão, budista, ateu, o que for, mas, acima de tudo, alguém que expurgou aquelas figuras assombrosas de si mesmo.
Por que chamar de experiência mística algo destituído de crenças, superstições, religiosidade? Isso só serve para criar confusões.
Mais ou menos. Primeiro, porque a experiência é pessoal e, por isso, se serve do arcabouço mental e cultural daquele que experimenta, posto que acontece dentro dele mesmo. Isso significa que se este arcabouço estiver habitado por superstições e imagens fantasmagóricas, este é um problema do arcabouço mental do experimentador, e não da experiência. Segundo, que as tradições esotéricas (com s) e místicas dentro das religiões costumam ser justamente sua vertente contemplativa, alegórica, filosófica e interior, radicalmente distinta das imagens, práticas e superstições que ocupam o vulgo. Por exemplo - assisti a entrevista de um swami, isto é, um místico iniciado hindu, posso até postar aqui se quiser. Quando perguntado sobre o porquê do Hinduísmo ter tantas divindades, com tantos atributos e feições, ele disse - a consciência comum do homem é completamente incapaz de conceber a fonte suprema, a verdade última, o incognoscível... por isso, os homens personificam atributos e aspectos cósmicos para que, naquela limitada forma, apreensível pelos olhos e pelo intelecto, possam, indiretamente, adorar esse mistério. É claro que o vulgo hindu, com suas estátuas e oferendas, não sabe disso, e crê em entidades externas e toma imagens como literais. Reagir com refutação e ateísmo, neste caso, é o mínimo de sensatez, e este costuma ser o caso do vulgo generalizado, não apenas no hinduísmo. Por isso, nutro respeito e compreensão pelos ateus, e não os vejo como tolos enganados, mas, justamente pelo contrário, pessoas que têm mais compromisso com a razão e com a verdade. Entretanto, se você começar a estudar as "tradições interiores", isto é, as vertentes contemplativas e místicas das religiões e das filosofias, encontrará um tesouro radicalmente distinto das manifestações exteriores e vulgares. A distância entre um
São João da Cruz e um católico de massa é maior do que a distância entre um ateu sensato e um fanático supersticioso.
Não. A questão é: óculos servem a quem necessita deles. Se você enxerga melhor através da lente do misticismo (seja lá que significado dê ao termo), o mesmo não vale para todos - para quem tem visão saudável causa apenas embaçamento.
O problema é quando as coisas se confundem e tenta-se utilizar aparelhos auditivos para corrigir miopia. Reitero que são dimensões diferentes, com fins e meios diferentes, e desprezar uma devido a um "antagonismo da ciência" projetado seria o mesmo que chegar para sua mãe e dizer - "você não me ama, são apenas endorfinas!!!". Sim, são endorfinas e sim, ela te ama, e sim, não se aprecia música calculando as frequências em hertz, mas contemplando-a. Descondicionado, o indivíduo pode experienciar todas estas coisas, ciente de que ocorrem dentro dele mesmo.
E que experiência seria essa que eu reluto em aceitar - pôr os seus óculos? Você parte do pressuposto que sou míope por não partilhar sua visão das coisas e o preconceito está comigo?
De forma alguma! Tanto é que deixei bem claro, logo nos primeiros posts, que há ateus e outros contra os quais não há nada a contestar e argumentar. Eu não te vejo como alguém tolo, enganado ou míope, muito pelo contrário. Não quero que você use o meu óculos, quero apenas que pare de pôr um aparelho auditivo na frente dos olhos enquanto reclama que ele não serve para corrigir sua visão.
Falando numa linguagem que você compreende bem - seu caminho não é o único e nem o melhor, a não ser para você mesmo. Quem precisa acreditar que os outros estão no caminho errado para confiar no seu próprio caminho não passa de um pecador (a palavra pecado deriva do latim significando dar um passo em falso).
Eu mesmo deixei claro que meu caminho não só não era o único como alguém pode muito bem ser ateu, cristão e o diabo e possuir uma mente descondicionada, esclarecida e comprometida com a verdade e com a iluminação. Então, todas essas identidades e práticas serão apenas escolhas de uma consciência livre e verdadeiramente consciente, e não fruto de um mero condicionamento como é o caso da grande maioria em todos os grupos.