Gostaria de ver esse argumento de "cada um consome o que quiser e o Estado não deve interferir" justificando quando produtos de consumo livre são adulterados para fugirem de fiscalizações: será que os artifícios usados para burlar leis sanitárias, por exemplo, seriam uma justa tentativa de escapar do controle do governo, esse injusto ladrão?
Essa comparação não pode ser usada nem para desmerecer o ponto de vista dos libertários econômicos.
Sim, creio que essa tribo excêntrica dos libertários defenderia mesmo que o Estado não deva interferir em nenhum tipo de relação comercial, mas no caso de um produto adulterado sem aviso ao consumidor, ele evidentemente não está consumindo o que quer. É justamente o oposto: ele
NÃO está consumindo o que quer porque está sendo enganado por quem praticou a fraude.
Portanto não há uma verdadeira analogia entre o que você está dizendo e a liberação com restrições da comercialização das drogas, que não é em nada diferente da venda "liberada" de uma outra droga chamada álcool. Que é "liberada" mediante restrições ( não ser vendida a menores, não poder dirigir após o consumo, etc... ) mas a lei determina que o consumidor deve adquirir exatamente o que está discriminado no rótulo da garrafa.
Mas acho que um verdadeiro libertário não defenderia nem a regulamentação das drogas, mas sim o fim da proibição. Pura e simplesmente.
Eu pessoalmente não sou adepto do libertarianismo e nem enxergo o problema dessa forma assim tão simplista, como sendo uma questão de direito inalienável do cidadão fazer o que bem entende com o próprio corpo. Para mim ao cidadão deve mesmo ser permitido fazer qualquer coisa da sua própria vida, mas este direito é sempre limitado pelo direito dos outros: se o que você faz com a sua vida afeta também a vida de terceiros, então você tem responsabilidade sobre o que está causando, e a sociedade não só pode como é obrigada a coibir comportamentos que ameacem a segurança ou bem estar da coletividade.
Well... não precisa ser da "coletividade", basta que ameace a segurança ou bem estar de mais alguém.
Mas antes de prosseguir no meu raciocínio é preciso aqui fazer uma ressalva: esse tipo de argumento não pode ser deformado para disfarçar uma mentalidade fascista de alguns, que se sentem particularmente confortáveis vivendo em uma sociedade com determinados padrões e uma determinada moral, e por isso se acreditam no direito de impor estes padrões e esta moral a todos os demais, com o argumento inaceitável de que qualquer desvio ( daquilo que arbitrariamente estabelecem como normal ) é uma ameaça à coletividade.
O fascista abusaria do princípio de que
"o seu direito termina quando começa o do outro" com o capcioso raciocínio de que, se ele não gosta e se sente incomodado com pessoas com o cabelo pintado de verde, então é legítimo proibir que cada um tenha o seu próprio cabelo com a cor que quiser, se isso incomoda o bem estar de alguém que não goste dessa cor. E assim ele quer que pensem que cercear o direito de alguém ter uma aparência que desagrada ao fascista é a mesma coisa que proibir que motoristas sejam uma ameaça dirigindo embriagados.
O que existe de errado nessa absurda comparação é que a raiz do incômodo do fascista reside na sua própria intolerância, na sua natureza autoritária desejando impor suas conveniências aos outros e se sentindo frustrado quando tal não acontece. Mas é um argumento tão idiota que poderia ser usado pelas pessoas de cabelo verde se dizendo no direito de exigir que outros também não as desagradem sendo morenos.
Mas não é por causa da minha intolerância ou autoritarismo que o motorista bêbado me ameaça. Pois ele pode atropelar tanto o fascista como a pessoa mais tolerante do mundo. Não é por causa da minha intolerância que a festa na casa do vizinho até as 5 da manhã não me deixa dormir. É por causa do som alto mesmo!
Enquanto que evidentemente os bêbados não poderiam dizer que motoristas sóbrios colocam suas vidas em risco. E nem meu vizinho festeiro pode alegar que o meu silêncio atrapalha o seu sono.
Portanto, com apenas um pouco de boa vontade e bom senso, podemos aplicar de forma honesta esse princípio básico de que
"o direito de cada um termina quando começa o do próximo", para balizar até onde pode ir o direito do cidadão.
Sob a ótica deste princípio, na minha opinião, é que deve ser examinada a questão do direito de consumir drogas.
Embora fumar a primeira pedra de crack possa ser uma questão de escolha pessoal, há o risco de, a partir desse primeiro uso, a pessoa se tornar dependente. E um dependente de crack não é mais dono da sua própria vontade e nem das suas ações: até a Madre Tereza viciada em crack vai roubar e matar se for preciso para satisfazer sua compulsão.
Então proibir o uso de crack não é diferente da necessidade de proibir que pessoas dirijam sob efeito de bebidas alcoólicas.
Porém, para além dessa discussão difícil sobre o direito ou não de cada um consumir o entorpecente que quiser, que passa por avaliar o quanto a difusão do uso de cada determinada substância possa ser prejudicial à sociedade, existe a questão do pragmatismo na abordagem do problema.
Vamos supor que os melhores argumentos demonstrem que é perfeitamente justo que o Estado proíba o consumo e a comercialização de qualquer tipo de droga... Aí eu te pergunto: de que vão valer estes argumentos se na prática se mostrar impossível estabelecer a proibição?!
Pior ainda se a proibição inócua causar efeitos colaterais sociais mais danosos até que o próprio consumo de drogas.
Essa é a realidade que vivemos hoje no Brasil:
- Em lugar algum, em tempo algum, foi possível proibir que pessoas fizessem uso de substâncias que produzem estados alterados de consciência. Mesmo países com recursos infinitamente maiores que o nosso e que investiram o que puderam na política de erradicação das drogas apenas viram o consumo crescer, década após década.
- A proibição, além de não surtir efeito nenhum, sobrecarrega o sistema penitenciário e o trabalho da atividade policial.
- A proibição não diminui o custo social do tratamento aos viciados, mas dificulta oferecer tratamento.
- A proibição implica em gastos estratosféricos dos contribuintes para impor uma política de combate às
drogas que não está conseguindo combater coisa nenhuma!
- A proibição implica em deixar de arrecadar bilhões em impostos.
- A probição é agente de corrupção.
- E o pior de tudo: a proibição gera o comércio ilegal que criou o poder econômico de facções de delinquentes que, por conta desse poder econômico, atingiram um grau de periculosidade e organização inimagináveis.
Esse é apenas parte do preço que se paga por essa política que finge proibir o uso de drogas. Vale a pena perder tanto e nada ganhar, só porque alguns acham que é moralmente correto proibir que as pessoas usem drogas?
Ou, levando-se em consideração que as pessoas vão continuar consumindo drogas não importa o que esteja escrito no Código Penal, a sociedade deveria tentar alguma outra coisa?
Porque, na pior das hipóteses, não se perde nada em tentar. O máximo que pode acontecer é que uma nova política na abordagem do problema das drogas não surta os efeitos esperados. Mas como a atual abordagem não surte efeito nenhum e ainda causa um estrago terrível, que justificativa racional pode ser dada para que não se tente alguma coisa diferente?