Sobre Paulo Freire achei isso, se vocês acham que é de direita, esquerda ou nem um coisa nem outra, avaliem aí:
Sobre o Paulo Freire procure vídeos do Paulo Ghiraldelli , por hora leia esse texto:
Hoje é dia de ensinar Paulo Freire. O conceito de vivência.02/11/2016,
Paulo Freire é visto pela direita como quem estragou nosso ensino. É fantástico que alguém tenha conseguido estragar algo no qual nunca conseguiu botar a mão. Os textos de Paulo Freire são de filosofia da educação, e jamais no Brasil pudemos realmente levar a sério isso nas escolas.
Paulo Freire é visto pelas esquerdas como marxista, revolucionário, militante de MST e coisas assim. Um mago que com um método de alfabetização salvaria o mundo. Ou então um homem que teria dito que “toda educação é política” como quem diz que “toda educação é ideológica”. A esquerda descontextualiza Paulo Freire mais que a direita às vezes. Não sei qual faz mais para destruí-lo! Acho que nisso a esquerda até ganha!
Mas há outros estragos na casa freiriana. O estrago que midiagogos e palestrantes fazem com Paulo Freire vem do fato de que midiagogos e palestrantres falam do que não entendem e não leem. Aliás, é isso que faz de alguém um palestrante. Usam frases de Freire aqui e acolá, para exaltar ou denegrir,. Não raro querem exaltar e na prática acabam denegrindo. Aquela do historiador de Campinas, falando que tudo é político, que “toda educação é política e/ou ideológica” é uma burrice tremenda. Há um outro palestrante que vive dizendo que “ninguém sabe mais ou menos, há saberes diferentes”. Outra bobagem. Essas frases todas são verdadeiras dentro de um texto específico de Freire, tiradas daí, não valem universalmente e Freire não as endossaria, pois são tolas.
Mas além de esquerda e direita, além de midiagogo jesuítas que requebram como vedetes, há mais um segmento que adora estragar Paulo Freire. Sempre Freire teve dificuldade entre os filósofos da academia, de um modo parecido com o que ocorreu com seu mestre, Anísio Teixeira, que, aliás, o avisou na juventude que ele enfrentaria essa resistência. Filósofo da educação não é filósofo, diziam e ainda dizem algumas figuras no meio acadêmico, quase que negando o quanto a filosofia, tendo nascido com Platão, já surgiu como filosofia da educação. Essas figuras cobram de Paulo Freire conceitos e citações, aliás, mais citações que conceitos – pois de fato não sabem historiá-lo e por isso não entendem os conceitos. Um deles é o de vivência.
Paulo Freire propôs um procedimento pedagógico que envolve cinco passos. Não são passos tradicionalmente didáticos, feitos “na sala de aula”, mas um processo que consome tempo às vezes indeterminado, e com espaços não delimitados. A sequência é esta: vivência, temas geradores, problematização, conscientização e ação política. Durante quarenta anos filosofando, expliquei em vários livros cada um desses passos, comparando-os com os de Herbart, Dewey e outros. Aqui, não estou falando de pedagogia, mas do tipo de conceito utilizado por Freire, de sua heterodoxia, de sua maneira sincrética de construir conceitos, mas bem correta, e que deu o modo típico de como filosofou sobre a cultura e a educação.
Os americanos não possuem o termo vivência, e usam “experience”. Não é a mesma coisa. Nisso, tiveram dificuldades de entender Paulo Freire. Mas tiveram menos dificuldade do que a esquerda e a direita brasileiras. Vivência não é algo do senso comum. Tem a ver, em Freire, com Bergson e com alguma elaboração da Fenomenologia, que tangencia aí Dilthey, Husserl e Heidegger. Freire sempre se disse discípulo de Dewey, mas, nesse passo inicial e fundamental de seu procedimento filosófico-pedagógico, ele elaborou um conceito com a ajuda de sua formação de época. Antes que marxismo, cristianismo e pragmatismo, Freire nunca deixou de ser um homem profundamente influenciado pela fenomenologia. Pois bem: vivência é uma situação que se vive e que não se repete, não se copia, e ocorre individual e singularmente. Vivência é o que ocorre com o beijo. Nunca um beijo é igual ao outro, e o beijo só é beijo que se guarde se for bom. A vivência está, então, na tradição do não-pensamento, que é a racionalização que quebra a vivência. Ela é o puro ocorrer, e marca profundamente não a sensibilidade ou a inteligência, mas a parte que Platão chamava de timótica. Ela é conformadora e criadora do thymos. Dá-nos a identidade.
Somos o que somos antes pelas nossa vivências que pela nossa capacidade sensível ou pela nossa narrativa intelectual interpretativa. Não se trata aí de um irracionalismo, mas de mostrar o conceito de vivência como o que é aquilo que é a vida na comunidade, a identidade na comunidade, a preparação para se tornar, na comunidade, aquele que pode reunir outros no círculo de cultura, na atividade pedagógica, no aprendizado ombreado das primeiras letras. O animador não é alguém “de fora”. Mas se é, deve passar pela necessária aculturação, ou seja, pelas vivências.
O ato filosófico-pedagógico de Freire está imbuído da ideia socrática de erotismo, e também pela fórmula rortiana de redescrição. Mas, no seu “start”, está sob o regimento das filosofias que deram importância à vivência, o que é aquilo que Hegel distinguia entre Erfahrung e Erlebnis. Vivência histórica e vivência psíquica. Em Paulo Freire essas duas dimensões se unem, a vivência que temos da história de nosso povo e a vivência psíquica, individual, referente ao que passamos. Mas, nos dois casos, não se trata do relato do vivido, mas da situação inenarrável do vivido no momento vivido, quando nos colocamos “de corpo e alma”, ou quando nos colocamos de “corpo e alma em um beijo da pré-adolescência”. Quando o filósofo-educador ou o animador de cultura ou o educador-educando se desloca para estar na comunidade no qual irá iniciar sua atividade, ele deve estar sujeito a abraçar tais vivências. Elas o alimentarão. Sem ela nenhum processo pedagógico se inicia. Vivência é um conceito de difícil entendimento para o educador que toma a educação segundo o artificialismo dos processos tradicionais escolares. Quando a escola quer imitar isso, acaba gerando o professor-tia, o educador-mãe e todo o tipo de de coisa que não tem nada a ver com o animador de círculo de cultura freriano. Freire jamais disse que se deveria passar a mão na cabeça de pobre ou desgraçado para que a pedagogia funcionasse. Freire não tematizou isso. A vivência é alguma coisa que passa longe da dicotomia professor-autoritário versus professor-amigo. Todos que viram em Freire algo próximo dessa disputa, o leram sob o óculos da luta estritamente didática da Escola Nova versus Escola Tradicional. Baita erro!
Paulo Freire nunca pensou em elaborar esse conceito, o de vivência, fazendo um texto tipicamente acadêmico, com notas de rodapé sobre cada parte do conceito. Mas, seus livros iniciais, até porque têm a ver sim com a academia (sua tese foi publicada por universidade americana, inicialmente), garantiram explicações suficientes sobre suas raízes filosóficas. Muitos nunca notaram isso por falta própria, ou seja, por carência cultural, falta de formação filosófica, culpa própria e não de Freire.
Meu livro Lições de Paulo Freire (Manole), que já teve várias impressões, diz o modo como eu o leio. Sugiro a leitura. Mas, se se quiser aprender com Paulo Freire, o segredo básico, no caso do aprendizado de seu procedimento, é levar a sério, na filosofia, o conceito de vivência.
Paulo Ghiraldelli 59, filósofo. São Paulo, 02/11/2016
http://ghiraldelli.pro.br/filosofia/paulo-freire.html