Abaixo transcrevo a introdução do livro "Tudo Que Você Precisou Desaprender Para Virar Um Idiota", supostamente de autoria do jornalista Álvaro Borba e da professora Ana Flávia Nerino. Supostamente suponho que seja mais do Álvaro. E falo por suposição porque na publicação o autor consta como Meteoro.doc apenas. Referência ao canal do Youtube Meteoro Brasil.
Este texto poderia ser postado em diferentes tópicos com os quais se relaciona - direta ou indiretamente - mas vou inclui-lo aqui como resposta a um comentário do Horácio, que enxerga em fóruns como este uma arma a serviço da "guerra cultural". Uma opinião com a qual não concordo e acredito que o texto abaixo parece não concordar também. Contudo o leitor pode aprender nessa leitura que diabos é essa tal de "guerra cultural", de onde veio e quem e o quê está por trás disso. E, claro, o papel das mídias sociais nisso tudo.
Porém a reflexão contida no texto caberia bem ao tópico "Nós e as Mídias Sociais", criado pelo forista Muad´Dib. Onde ele manifesta sua preocupação com o uso político destas ferramentas e lamenta que a Academia não investigue o tema com o devido interesse que deveria suscitar.
Ao ler este capítulo Muad poderá descobrir que existe sim, muito interesse. O texto cita e se apoia em vários trabalhos importantes que nos ajudam a entender como e porque as redes sociais estão causando o impacto político e ideológico que estão causando.
No entanto acredito que o livro tem muito a dizer também ao forista que perde o sono com a Nova Ordem Mundial. Que na sua imaginação viria a ser uma radical reordenação do mundo a ser imposta por uma elite extremamente poderosa agindo nas sombras. Manipulando governos, empresas, meios de comunicação e, principalmente, organismos internacionais multilaterais.
Em concatenação com essa teoria da conspiração ( e também com várias outras ), a leitura deste capítulo também seria relevante para os que se assombram com o fenômeno do "terraplanismo" e buscam entendê-lo. De fato, o autor faz uma afirmação específica que vem ao encontro de uma tese que defendi extensamente em vários posts, em tópicos diferentes.
Também pode ajudar ao sergiomgbr a descobrir como ele mesmo veio a se tornar um bolsominion fanático. Acreditando que ideologia de gênero existe e que a esquerda quer negar as diferenças biológicas entre os sexos. Acreditando que Paulo Freire come criancinhas e que a ONU está a serviço do marxismo gramcista. Acreditando na teoria da conspiração do marxismo gramcista! Idolatrando Donald Trump, flertando com o racismo e já pondo em questão até a realidade das mudanças climáticas. Enfim, acreditando no arsenal inteiro de bobagens que enfiaram em sua cabeça pelo zap através do grupo da família.
E tudo isso apenas nos poucos meses em que ele ficou afastado do Clube Cético, sozinho e vulnerável na selva hostil das redes sociais, exposto a perigosos predadores ideológicos, de onde voltou lobotomizadamente convicto de que a atual administração seria totalmente integrada por "homens de bem tentando fazer um bom governo".
E não só o Sergio, mas até o Huxley - tão culto e inteligente - pode daqui começar a extrair subsídios para compreender porque em pelo século 21, em pleno 2020, ele foi capaz de ser abduzido por um neo-macartismo totalmente anacrônico. Provando mais uma vez que o preço da liberdade é a eterna vigilância e que ninguém está imune a ondas de insanidade coletivas.
As inserções em azul serão minhas.
E antes de que eu me esqueça: compre o livro e diga não à pirataria.
Boa leitura.
Antes de tudo, o idiota.
Um idiota é, antes de tudo, tudo mesmo, um marginal.
Originalmente, o termo ídhios era usado de maneira
depreciativa para definir aqueles que se apartavam da vida
pública na antiga Atenas: o cara abria mão da vida em
sociedade, com suas regras e anseios civilizatórios, e
automaticamente era chamado de idiota. Esse é o idiota
ancestral.
O tempo passou e o jogo virou. Antes marginalizado, o idiota agora se
apossa com facilidade das estruturas de poder. Com essas estruturas nas
mãos, constrói um mundo à sua imagem e semelhança – um mundo no qual
estamos todos condenados a viver.
Alguém pode ver aí uma prova incontestável da ascensão do idiota: de
mero marginal para um político de destaque, grande empresário, digital
influencer, milionário ou pensador pop. Mas há outra maneira de ver as
coisas, bem menos amarga.
Os idiotas que ditam os rumos de nossas vidas têm muito pouco a ver
com aqueles ancestrais e marginalizados. Um olhar atento para o termo
ídhios revela as diferenças: o significado original é “próprio, ao mesmo, a
si”. Era o ateniense que olhava e cuidava de si em oposição ao cidadão
grego, sempre integrado e dedicado às questões da cidade-estado (ou, como
os gregos chamavam, pólis). Se o cidadão era um animal político, o ídhios
era apenas um animal. Justamente por não querer saber de política, passou a
ser designado por um termo depreciativo.
No século XXI, ao contrário, os idiotas estão obcecados pela política. E
é nessa contradição entre o sujeito apartado das questões da vida pública,
mas em imensa proporção disposto a atuar diretamente sobre elas, que mora
uma explosiva combinação comunicacional. Pois o idiota agora não está
sozinho. Em grupo, em rede, conectado, ele não quer saber de política, mas
participa dela continuamente.
Os idiotas mudaram porque o próprio termo mudou, adquirindo novos
usos e assimilando novos conceitos. Aqui e agora, idiota é sinônimo de falta
de inteligência, baixo discernimento. Mas idiota – e o Aurélio e o Houaiss
concordam – também significa “pretensioso” ou “vaidoso”. A lista de
sinônimos é grande, mas mantém alguns laços com ídhios. Se o idiota
ancestral optava por renunciar ao coletivo e se dedicar à sua vida particular,
pode-se pensar que se considerava superior à coletividade rejeitada. Havia
uma vaidade ali e, aos olhos da sociedade ateniense de então, também
tolice.
Nesse ponto, o idiota ancestral e apolítico se encontra com o
contemporâneo e obcecado por política: desde sempre, o idiota é um sujeito
autocentrado, preocupado exclusivamente consigo mesmo.
O idiota era um egoísta no passado – e continua sendo. A diferença é
que, na antiga Atenas, ele ficava de fora da política. Hoje, ele é a política.
Tudo é feito por ele, para ele, em nome dele. Por isso, a prioridade absoluta
do idiota é combater qualquer filosofia ou doutrina que pregue valores
coletivos. Se há um coletivo, o idiota se sente ameaçado em seu direito
sagrado de ser idiota.
Essa é a primeira lição que foi preciso desaprender para virar um idiota:
o respeito a todos e a tudo que não está relacionado a si mesmo.
Até aqui, vimos como, por trás de cada palavra, há ideias, conceitos e
abstrações que são a matéria-prima com a qual moldamos nosso léxico e a
nossa subjetividade. A etimologia – que investiga a origem das palavras –
estuda, por tabela, a história da consciência humana.
Nas mãos da Filosofia, a etimologia tem se revelado um verdadeiro
canivete suíço: ela parece ser só um campo específico da Gramática, mas há
muitas ferramentas contidas nela. Nietzsche que o diga! Certa vez ele abriu
seu canivete etimológico e dissecou as origens dos termos bem e mal. Lá se
vão uns cento e trinta anos, e ainda debatemos o que Nietzsche escreveu.
No presente idiotizado, há quem use o mesmo instrumento para assaltar
as palavras, destituindo-as de sua riqueza histórica, seus conceitos, suas
abstrações e suas ideias acumuladas ao longo dos séculos. O assaltante
linguístico é perigoso, e a periculosidade aumenta quando ele encontra
outras armas, como a comunicação pública. Aí, ele ganha acesso a armas de
destruição em massa.
Reagir a um assalto, bem se sabe, é sempre perigoso. Sendo assim, é
prudente avisar: lendo este livro, é exatamente isso que você estará fazendo.
O lado bom é que talvez você consiga reaver coisas preciosas – talvez até
coisas que nem sabia que tinha.
A gente resolveu falar do idiota primeiro porque ele sempre acha que é
mais importante que todo o resto; e também porque quase ninguém lê os
prólogos. Dito isso, precisamos avisar que este livro é dividido em duas
grandes partes: a primeira, onde você está, apresenta as fundações do que
entendemos como os procedimentos de comunicação das teorias
conspiratórias.
[ É exatamente a análise e compreensão destes procedimentos que relacionam este texto com os vários temas e foristas que listei acima. Pode ajudar a entender como as redes sociais estão levando cada vez mais pessoas a se tornarem receptivas a teorias improváveis. ]
Estão aqui os autores que nos instigaram a escrever esta obra
e que nós acreditamos que possam funcionar como aliados na luta para
entender – e combater – a idiotice. Depois desta (longa) introdução, aí sim,
começamos a desconstruir algumas das teorias conspiratórias que, no
momento, embasam a política e a comunicação no Brasil.
[Sim, percebi lendo este livro que há muito interesse acadêmico em entender como a internet está mudando a forma de se fazer política. Entre outras coisas. ]
Faça o seu caminho entre os capítulos como quiser, mas, acima de tudo, não deixe de
questionar e buscar novas referências. Por enquanto, nós vamos tentar
desvendar um assassinato.
CAUSA MORTIS
Aconteceu nos Estados Unidos, no Brasil e em uma porção de outros
lugares: o poder político foi entregue a homens que dizem coisas até então
inadmissíveis. Nos Estados Unidos, o candidato a presidente diz que uma
minoria étnica é formada por estupradores. No Brasil, seu equivalente
tropical recomenda dar umas porradas no filho que estiver ficando “assim,
meio gayzinho”. No fim, ambos vencem suas respectivas corridas eleitorais,
não apesar de declarações como essas, mas, como veremos aqui, em função
delas.
Enquanto isso, do outro lado do mundo, há quem se compare sem
pestanejar a um ditador: “Hitler massacrou 3 milhões de judeus. Agora há
aqui 3 milhões de viciados em drogas. Eu gostaria de massacrá-los todos”,
disse o presidente das Filipinas. Qualquer dúvida a respeito da veracidade
da declaração seria reconfortante, mas o mundo não tem esse luxo. O trecho
consta na transcrição divulgada oficialmente pela presidência do país. Da
Turquia, vem um discurso presidencial segundo o qual “uma mulher que se
nega a cuidar da casa é incompleta e deficiente”. Já na Hungria, o primeiro
ministro diz que os refugiados vindos de um Oriente Médio devastado por
guerras sucessivas são um “veneno” matando a Europa lentamente.
Não costumava ser assim. Houve um tempo em que o mais comum era
que políticos optassem por discursos menos polarizadores e mais
consensuais. Fazia sentido: não queriam magoar ninguém, não por nobreza
ou consideração, mas por votos. No entanto isso mudou – do consenso
como padrão, passamos à polarização como ferramenta política.
[Por que a polarização passou a funcionar como ferramenta política? Qual o papel das redes sociais nisso? O texto apresenta mais adiante uma ótima explicação. ]
E, com as declarações propositalmente polarizadoras, vieram as
mentiras. Não que em política isso seja novidade, mas, na década em que
esse novo paradigma de liderança emergiu, as mentiras passaram a se
organizar para formar teorias conspiratórias elaboradas e complexas. O líder
dos Estados Unidos nos avisa que as mudanças climáticas são a invenção de
“uma indústria que ganha dinheiro” e sustenta com a mesma convicção (ao
menos na aparência) que a certidão de nascimento de seu antecessor foi
fraudada para esconder o fato de que ele representava interesses
estrangeiros infiltrados no país. Na Hungria, a questão migratória é
atribuída integralmente ao financista George Soros, que teria inclusive um
exército particular trabalhando para entupir a Europa de muçulmanos. No
Brasil, ministros falam em globalismo, marxismo cultural e, claro, na
ameaça sempre presente de uma ditadura comunista. No decorrer deste
livro, compreenderemos o que há por trás desses termos e o que nos permite
afirmar, mesmo diante dos mais estritos critérios metodológicos, que há aí
uma superteoria conspiratória. Por ora, as questões são outras e mais
urgentes: como isso foi acontecer? Como teorias conspiratórias passaram a
ocupar um espaço central no debate político? Ou, com o perdão antecipado
da carga dramática: como foi que a verdade morreu?
Muita gente está tentando entender o que quer que esteja acontecendo
no mundo. Não é tarefa fácil: além das ferramentas metodológicas
necessárias à análise do fenômeno, algum distanciamento histórico também
é demandado. Nesse caso, os objetos de estudo tendem a ser grandiosos
demais para serem contemplados tão de perto. Steven Levitsky, cientista
político da Universidade Harvard, faz parte desse esforço coletivo de
interpretação da realidade. Seu Como as democracias morrem foi concluído
meses antes de o Brasil ter escolhido entregar a presidência a um
representante dessa nova tendência polarizadora. Levitsky nos alerta para o
fato de que líderes que se demonstram autoritários no discurso costumam
fazer o que falam. Ao que tudo indica, embora sejam conhecidos por
descumprir promessas, os políticos costumam levar suas ameaças mais a
sério. Dessa forma, é sempre prudente considerar que um líder que diz que
este ou aquele grupo merece “porrada” eventualmente estará disposto a
transformar palavras em ação. Parece óbvio que discursos violentos
ensejem ações violentas, mas estamos precisando que alguém nos aponte
essa tendência – exatamente o que Levitsky faz. Talvez essa necessidade
seja uma das consequências mais evidentes do esvaziamento simbólico de
uma era de polarização.
Recorrendo com frequência ao trabalho deixado por Juan Linz em seu
The Breakdown of Democratic Regimes [O colapso dos regimes
democráticos], Levitsky elabora um modelo simples para identificarmos as
potenciais tendências autoritárias de um líder. O mérito de Levitsky é dar
clareza e atualidade ao texto de Linz, que nem sempre é compreendido com
facilidade. Usando Linz como ponto de partida, Levitsky elabora uma
metodologia simples e direta para a identificação de tendências autoritárias.
O teste de autoritarismo de Levitsky precisa de apenas 4 etapas para
entregar um resultado: primeiro observamos se o líder em questão rejeita as
regras do jogo democrático. Por exemplo: se alguém, ao disputar uma
eleição, diz que não aceitará o resultado em caso de derrota; isso é sinal de
autoritarismo. Em segundo lugar, precisamos ficar atentos a qualquer
discurso ou comportamento que encoraje a violência: um político que,
durante sua campanha, ensinasse uma criança a simular uma arma com as
mãos, certamente se enquadraria aqui. Na terceira etapa do teste,
observamos se o político em questão nega a legitimidade da existência de
seus adversários políticos; se ele diz, hipoteticamente, que os adversários
merecem ser metralhados, o que nunca é bom sinal, pouco importam as
qualidades morais dos adversários. Por fim, devemos reparar se o aspirante
ao cargo, em algum momento, sugere que usará seu poder para restringir as
liberdades civis de seus opositores ou prejudicá-los de alguma forma; aí
poderíamos enquadrar alguém que se dissesse capaz e disposto a acabar
com “todos os ativismos do Brasil”.
Quando olhamos para a obra de Levitsky, concluímos que há uma
tendência autoritária unindo todas aquelas declarações polarizadoras e
teorias conspiratórias.
[Há um interesse autoritário por trás de muitas teorias conspiratórias. Poderia se dizer que o fascismo é essencialmente conspiratório porque precisa iludir as pessoas sobre vários aspectos da realidade. O real então é substituído por alguma teoria da conspiração martelada na cabeça das pessoas.]
Além de abrangente, o fenômeno é perigoso: no século XXI, não é com tanques de guerra nas ruas e tiros de canhão que se mata uma democracia, mas elegendo alguém disposto a subverter as regras
do jogo. Nesse empenho, a comunicação é a ferramenta perfeita, pois é no
âmbito dos significados que reside a maior disputa por poder na atualidade.
A guerra é semântica, e mesmo os adeptos das teorias conspiratórias mais
alucinadas parecem reconhecê-la quando escolhem nominar seus esforços
para exercer poder na arena discursiva como “guerra cultural”.
A maioria de nós aprendeu na escola sobre as grandes tragédias
políticas humanas. Sabemos quando e onde ocorreu o Holocausto,
recitamos os nomes e as datas de posses de generais, decoramos os nomes
de regimes e guerras. Contudo – e não dizemos isso necessariamente como
uma crítica ao sistema de ensino, mas talvez por reconhecermos as
limitações que a imaturidade escolar nos impõe –, nos acostumamos a
pensar muito mais no que aconteceu (assim, no passado) do que no que está
acontecendo.
Como funciona o fascismo, de Jason Stanley, é outro livro que se
esforça para levar ao grande público alguma compreensão das
transformações políticas em curso. Stanley, que pesquisa na Universidade
Yale a respeito de movimentos neofascistas, destaca 10 características
fundamentais que se unem para formar o conceito escondido na palavra
“fascismo”. De história ultrajante, essa palavra é ainda pouco discutida e
conhecida em sua mecânica de produção de sentido.
Com o passar do tempo, velhas palavras podem ganhar novos
significados: o que hoje é um insulto já foi uma filosofia tida como válida,
um movimento político tido como legítimo e uma visão de mundo tida
como defensável. É só quando olhamos para trás e reconhecemos os
padrões que podemos compreender como as coisas aconteceram – e como
podem voltar a acontecer, mesmo que os movimentos não venham
convenientemente embalados com a etiqueta do fascismo. Nesse caso, ao
mostrar os 10 pilares em que o fascismo se apoia, Stanley nos permite
ponderar se essa safra de líderes polarizadores que observamos hoje pode
ou não ser chamada – para muito além do puro insulto – de fascista.
Há quem entenda o fascismo como um regime específico; outros, como
uma ideologia particular; outros, ainda, como um modo de fazer política.
Na obra de Stanley, ele aparece não apenas como ideologia, mas como uma
técnica para obter e manter o poder. Tanto quanto as características
definidoras do fascismo, os tais 10 pilares descrevem os procedimentos
adotados por essa técnica.
[Nota: quando Jason Stanley publicou seu livro o Bolsonarismo ainda não existia. Mas qualquer semelhança com fatos e personagens reais vai além da mera coincidência.]
O primeiro desses pilares consiste em despertar nas pessoas uma
nostalgia que viabilizará as etapas seguintes. Na retórica fascista, há sempre
uma busca por aquilo que Stanley chama de “passado mítico”. Ao menos na
superfície discursiva, toda política existe como um meio para promover a
volta a um determinado período histórico glorificado pelo fascista – que
invariavelmente se coloca como herdeiro legítimo desse passado patriarcal
em que ainda existia a ordem que ele quer fazer valer no presente. Se
percebêssemos no Brasil uma nostalgia nesses moldes, direcionada ao
período da ditadura militar, saberíamos que o primeiro pilar foi erguido.
O segundo pilar do fascismo é a propaganda, que se dedica a inverter as
coisas: doutrinadores falam em luta contra a doutrinação e corruptos falam
em luta contra a corrupção. Se qualquer iniciativa brasileira no sentido de
fechar os ralos por onde escorrem os recursos públicos se confirmasse como
parte de um plano de poder igualmente corrupto, teríamos a certeza da
solidez desse pilar.
[Vemos também como o discurso da "escola sem partido" está sendo pretexto para promover doutrinação ideológica nas escolas. Olavo de Carvalho esteve prestes a receber todos os meses uma pequena fortuna do contribuinte para vomitar seu besteirol aleatorio justamente na TV Escola.]
A terceira característica fascista é o anti-intelectualismo: as
universidades são hostilizadas por disseminar muita doutrinação e pouca
educação, servindo como propagadoras de todo o tipo de imoralidade. É,
portanto, parte fundamental dessa técnica encarar a universidade como
balbúrdia a ser combatida. Infelizmente, Stanley não diz se um ministro da
educação rejeitar a própria área contaria pontos extras nesse jogo.
É o quarto pilar que se relaciona de maneira direta com a nossa
pretensão de entender o esfacelamento da verdade e a presença massiva de
teorias conspiratórias no debate político. A destruição da realidade também
é fundamental. Stanley explica que a liberdade depende da realidade: sem
uma compreensão adequada da realidade, não temos qualquer capacidade
de embasar nossas decisões e ficamos perdidos. Quando o consenso sobre a
realidade é destruído e o medo de inimigos imaginários é disseminado por
meio de teorias conspiratórias, tudo que poderemos fazer é confiar em um
líder e acreditar que seus discursos são verdadeiros. Essa quarta parte
consiste, assim, em transformar as palavras do líder no único referencial
possível para a compreensão da realidade. E até faz sentido que seja dessa
forma, afinal, o fascismo é sobre lealdade – nunca sobre liberdade.
Numa quinta divisão da técnica fascista, encontramos a hierarquização
da sociedade. É aqui que o subtítulo da obra de Stanley – A política do
“nós” e “eles” – encontra sua justificativa. Aqueles que estão ou ainda
pretendem estar no comando, sempre seguidos dos que os apoiam, não
hesitam em expressar sua pretensa superioridade. Radicalizada, essa
tendência poderia chegar a ponto de um deputado dizer a uma colega de
posicionamento ideologicamente oposto que ela não é estuprada por ele
porque não merece.
O sexto pilar do fascismo é a vitimização: o grupo dominante, já
devidamente enquadrado naquele esquema de lealdade ao líder, se diz
vítima das minorias. Toda e qualquer tentativa, por mais branda que seja, de
estabelecer alguma justiça social e de promover igualdade é encarada como
uma violência cometida contra o grupo dominante. Se o Brasil em algum
momento passasse a atacar o sistema de cotas que levou negros e pobres às
universidades, então saberíamos estar diante da tentativa de erguer o sexto
pilar.
A sétima prática fundamental do fascismo é a criminalização de suas
dissidências por meio de um princípio batizado por Stanley de “Lei e
Ordem”. Aqui, qualquer questionamento ao líder ou às posições do grupo
que o cerca é visto como indício de crimes ainda maiores que o próprio
questionamento. As dissidências, criminalizadas, devem ser vigiadas, e o
líder encoraja seus seguidores a ajudá-lo nessa tarefa. Se um presidente
vence uma eleição e, ao comemorar sua vitória, diz que o concorrente logo
estará na cadeia, ele ergue o sétimo pilar instantaneamente e não importa
que fosse uma bravata. Se um ministro da educação soltasse um
comunicado incentivando estudantes de todo o país a denunciar professores
com ideias que pareçam contrárias à política governamental, talvez
poderíamos pensar que este pilar estivesse em pleno riste.
O oitavo pilar do fascismo é surpreendente apenas se considerarmos que
a política é feita de grandes questões públicas, excluindo aspectos mais
particulares de cada indivíduo. Trata-se da disseminação de uma tensão
sexual que apela para nossos medos mais íntimos. Os opositores do líder
são considerados naturalmente imorais, dados a todo tipo de prática sexual
para lá de contestável. Quando uma mamadeira erótica vira um dos assuntos
mais comentados de uma corrida presidencial, definitivamente não é um
bom sinal.
Em seu nono passo, o fascismo expande o que conquistou espalhando
tensão sexual. Em referência à Bíblia, Stanley chama esse pilar de “Sodoma
e Gomorra” e sintetiza seu significado da seguinte forma: existiria no líder e
no grupo dominante uma pureza tradicional e ancestral que se contrapõe
àquela imoralidade moderna e urbana de seus opositores. Cria-se no núcleo
do fascismo um sentido de dever: o grupo dominante precisa assumir a
liderança moral e ensinar aos seus opositores, muito hipoteticamente, que
menino veste azul e menina veste rosa.
Por último, o fascismo estabelece a noção de que qualquer um que
resista a seu domínio é um preguiçoso. Ao batizar o décimo pilar de “Arbeit
macht frei” [o trabalho liberta],[1] Stanley nos alerta para todos os horrores
que se tornam justificáveis quando julgamos que contra nós há apenas
monstros imorais e preguiçosos. Tudo começa com a acusação de que a
oposição só quer a queda do fascista para continuar na mamata.
É necessário ressaltar o papel central da destruição da realidade nisso
tudo: é só porque os seguidores do grande líder perderam qualquer contato
com a verdade que eles se rendem a seus piores ódios e temores. E pouco
importa se esses ódios e temores são exatamente os mesmos do fascismo da
primeira metade do século XX. O que importa aqui é que os métodos são os
mesmos: o ataque deliberado contra a realidade faz parte da técnica. De
fato, alguns fantasmas são recorrentes na história da humanidade; basta
lembrar que o mundo luta contra uma poderosa onda comunista que ainda
não chegou desde os anos 1950. Mas sempre há espaço para um novo
bicho-papão nos armários das mentes seduzidas pelo fascismo.
Uma síntese precisa do ideário dos líderes polarizadores – agora já
tecnicamente compreendidos como potenciais fascistas – está em O ódio
como política. Organizado por Esther Solano Gallego e publicado em 2018,
o livro reúne artigos de diferentes autores e concentra seus esforços na
tentativa de compreender o caso específico do Brasil dentro de toda essa
história. Um desses textos, “A nova direita e a normalização do nazismo e
do fascismo”, pode ser especialmente útil na medida em que traça uma
síntese das ideologias que compõem o fenômeno político que estamos
tentando compreender. Assinado por Carapanã, o artigo identifica que
“misturam-se ideais do conservadorismo, do libertarianismo e do
reacionarismo”. E mais: segundo o autor, a nova direita flerta, “de maneira
consciente ou inconsciente, com construtos que remetem ao nazismo e ao
fascismo”. Por aqui, gostamos de chamar esse tipo particular de
combinação política de “estado mínimo fio dental” ou o tradicional “liberal
na economia e conservador nos costumes”: deseja-se um estado que não
cobre a educação ou a saúde, mas que se importa sumariamente em cobrir
as partes mais íntimas dos seus cidadãos.
Nesse ponto, a percepção de diferentes autores se soma. Levitsky nos
avisa que há democracias que estão em risco porque foram entregues a
políticos interessados em subverter suas regras em nome da obtenção ou da
manutenção do poder. Stanley expõe 10 procedimentos pelos quais essas
regras são subvertidas. Por sua vez, Caparanã nos dá os argumentos
necessários para sustentar que “nova direita” é um termo adequado para
definir a coisa toda. E ele vai além, complementando a obra de Stanley, ao
nos contar o que existe de fato dentro do tal “aglomerado ideológico” que a
técnica fascista colocou em evidência. Ao observar uma recessão
democrática no cenário global, Carapanã também conta que “a atual
movimentação política tem muitos pontos em comum, algo definitivamente
favorecido pela internet”.