"O Mestre e Margarida", de Bulgákov, vai da literatura satírica à crítica socialDANIEL BENEVIDES
Colaboração para o UOL
"O Mestre e Margarida" se tornou objeto de culto entre escritores e até bandas de rock
Só mesmo a URSS para produzir escritores raros como Mikhail Bulgákov. E só mesmo um raro escritor como Bulgákov para produzir um livro como "O Mestre e Margarida". Obra-prima da literatura satírica, misto de realismo mágico, comédia de costumes, história de amor e crítica social e política, o romance também se tornou objeto de culto ao longo dos anos, não apenas entre escritores, como também, curiosamente, entre bandas de rock.
Rolling Stones é um dos grupos influenciados de alguma maneira pela obra. Diz-se que Mick Jagger escreveu "Sympathy for the Devil" depois de acompanhar as aventuras do diabo e seu séqüito bizarro pela Moscou dos anos 30, tema central do livro. Salman Rushdie, por sua vez, já declarou ter usado "O Mestre e Margarida" como modelo para seus "Versos Satânicos", que lhe renderam uma famosa pena de morte.
Bulgákov sabia que teria destino semelhante se publicasse seu livro em vida, dada a forma ferina com que descreve a vida sob o regime soviético. Daí tê-lo escrito em segredo, nas sombras do período mais violento da repressão de Stálin. Num momento de paranóia, chegou a queimar uma primeira versão na lareira. A situação de medo e delírio acabou transportada para o livro, num lance claramente autobiográfico, que gerou sua frase mais famosa, dita pelo diabo em pessoa: "manuscritos não ardem".
Pois o Mestre do título nada mais é do que um alterego do autor. Tal como Bulgákov, trata-se de um escritor que se vê às voltas com a censura severa do regime, por conta de um romance sobre Pôncio Pilatos (a música "Pilates", do Pearl Jam, vem daí). Acusado de "pilatismo" (imagine Stálin lendo isso!), ele é colocado de escanteio, num asilo para loucos, um gulag demencial, não sem antes ter queimado boa parte de seus escritos. Estes, descrevendo o encontro do famoso procurador romano com Jesus de Nazaré, surgem entre os capítulos do romance, criando um curioso contraponto entre a Jerusalém em que cristãos eram cruelmente crucificados e a sinistra Moscou de trágicos expurgos.
Margarida, a bela Margarida, desde já uma das inesquecíveis figuras femininas da literatura, é a devotada amante do Mestre. Para libertá-lo, ela abandona o casamento infeliz e se entrega às hedônicas hostes satânicas (a alusão ao Fausto de Goethe não é casual). Em um dos vários momentos antológicos do livro, ela preside um baile faustuoso para os condenados ao Inferno. A cena, que inspirou a canção "Love and Destroy", do Franz Ferdinand, é deliciosa, um prodígio de imaginação. Tim Burton faria um filme sensacional com ela - com todo o livro, aliás. Poderia utilizar o roteiro que Polanski escreveu e nunca foi filmado. O velho Roman chegou a dizer que é a melhor coisa que ele jamais realizou.
Gozador de primeiríssima classe, o ucraniano Bulgákov, médico de formação como muitos grandes escritores (Tchekov é o primeiro que vem à mente), não perdoa ninguém no romance que acabou pouco antes de morrer, em 1940 (mas que só foi realmente lançado décadas depois). Na cena hilariante em que o diabo e seus comparsas, que incluem um enorme gato preto com modos sardônicos de gentleman inglês, promovem um show de mágicas num grande teatro moscovita, o autor atinge o ponto nevrálgico da vaidade e cobiça humanas, que se manifestam vergonhosamente, não importa o país e o regime. É um dos muitos momentos universais do romance, que justificam plenamente o culto. Por tudo isso, "O Mestre e Margarida" é daqueles livros excepcionais que unem alta diversão e reflexão profunda. Vale por cada linha.