Estação Carandiru
Drauzio Varella
"Já nas primeiras palestras fiquei surpreso com a consideração que os homens demonstravam por mim. Nas perguntas usavam termos e expressões como "sexo anal", "penetração", "prostituição", "homossexuais" ou "mulheres de cadeia" - jamais uma palavra grosseira; palavrão, nem pensar. Certa ocasião, ao interromper um vídeo da Daniela Mercury para colocar o de AIDS, uns três ou quatro do fundo assobiaram por brincadeira, como fazem os alunos de cursinho. Essa pequena manifestação deu o que fazer para o Waldemar Gonçalves convencer o pessoal que ajudava na montagem do equipamento a não esfaquear os assobiadores. Santão, um mulato musculoso cumprindo dezoito anos por assalto a banco, que ajudava a montar o equipamento de som, era dos mais revoltados:
- Qual é a desses caras, meu, querer zoar o médico que vem conscientizar os manos do perigo dessa praga e dar uma distração para a coletividade? Eles não estão tirando o doutor, estão tirando nós.
Na semana seguinte, o Benê,[...] apareceu com três jovens:
- Doutor, os manos aqui querem trocar uma idéia com o senhor.
O mais velho dos três, que na adolescência teve o olho esquerdo vazado por uma bala perdida, falou de cabeça baixa e com as mãos cruzadas atrás:
- Em nome meu e dos parceiros aqui presentes, junto, a gente veio pedir desculpa muito pelos assovios. Não foi por mal, mas se os companheiros entenderam que sim, quem somos nós para discordar.
Essa aura de respeito sincero em torno da figura do médico que lhes trazia uma pequena ajuda exaltou em mim o senso de responsabilidade em relação a eles. Com mais de vinte anos de clínica, foi no meio daqueles que a sociedade considera como escória que percebi com mais clareza o impacto da presença do médico no imaginário humano, um dos mistérios da minha profissão."
Em 1989, Drauzio Varella iniciou na Detenção um trabalho voluntário de prevenção à AIDS. Seu relato neste livro tem as tonalidades da experiência pessoal: resulta dos relacionamentos que a profissão de médico permitiu manter com presos e funcionários; não busca denunciar um sistema prisional antiquado e desumano; expressa uma disposição para tratar com as pessoas caso a caso, mesmo em condições nada propícias à manifestação das individualidades.
Na Detenção ele conheceu pessoas como Mário Cachorro, Xanto, Roberto Carlos, Sem-Chance, seu Jeremias, Alfinete, Filósofo, Loreta e seu Luís. Não importa a pena a que tenham sido condenados, todos estão sujeitos às normas de controle de comportamento vigentes na instituição. Por outro lado, todos seguem um rígido código penal não escrito, criado pela própria população carcerária (contrariá-lo pode equivaler à morte).
O livro fala dessas pessoas. São crônicas sobre formas de viver e morrer.
Vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria Livro do ano de não-ficção.