Dilúvio universal e Danikeísmo – o que acho absurdo e o que não acho.
A mitologia judaico-cristã é herdeira de uma tradição mesopotâmica anterior. Como tal, seus mitos de criação (Adão e Eva, homem do barro, serpente, dilúvio, etc.) são mero copismo, provavelmente feito durante a (re) criação da primeira parte da tanach judaica, no século VI ac. (cativeiro babilônico).
O que me interessa aqui é a suposição de que diversas culturas antepassadas, sem ligação aparente e eventualmente em continentes diferentes, mantêm um mito parecido.
Isso sendo verdadeiro seria, ao contrário do suposto aqui por colegas, fato surpreendente. Na verdade, catastrofismo e escatologia são comuns em diversas culturas. Crença em mudanças súbitas, que alteram a história a partir do desígnio dos Deuses são óbvias em sociedades que esperam que os Deuses interfiram em suas vidas (quase um tautologismo).
O problema aqui é encontrar um mesmo evento catastrófico sendo designado pelos Deuses para punir o homem, ou simplesmente para mudar o mundo. Acho coincidência demais...
O problema é supor, como Euzébio está supondo, duas coisas:
a) que este mito (do dilúvio) é realmente universal;
b) que esta universalidade permita inferir toda uma mitologia danikeísta.
Por partes:
O dilúvio é um mito presente em textos sagrados hindus (Vedas) e mesopotâmicos (Enuma Elish). Encontram-se mitos de um dilúvio dentro da mitologia grega e escandinava. Há evidências desses mitos em sociedades pré-colombianas.
Não há, salvo novas evidências em contrário, mitos assim entre egípcios, chineses, coreanos e japoneses. Nem em sociedades tribais polinésias e australonésias. Idem às sociedades tribais africanas (salvo a peculiar condição etíope).
Nas Américas, esses mitos seriam comuns às comunidades indígenas mais evoluídas (no sentido de organização social e progresso técnico/econômico/militar) e às mais atrasadas (idem).
O que Eusébio talvez não saiba é que há bastante controvérsia sobre a ancestralidade desses mitos. Basicamente, todas as referências ao dilúvio (dentro de um contexto mitológico próprio) entre as sociedades pré-colombianas foram relatados por missionários cristãos (católicos) dos séculos XVI em diante. Dos registros “escritos” de cunho próprio dessas sociedades, temos pouca coisa, já que a maioria das sociedades pré-colombianas não dispunha de alfabeto próprio. Os maias, por exemplo, dos registros escritos preservados, não relatam exatamente um mito diluviano, mas uma série de criações e destruições que permeiam a humanidade (leia-se: o mundo deles) em ciclos.
Em sociedades tribais (sem escrita) com religiões animistas ou totemistas (a maioria nas Américas), é muito comum que tradições do passado sejam contaminadas por interferências externas (os relatos disso na antropologia são inúmeros).
Os especialistas em história pré-colombiana e indígena em geral suspeitam com muita ênfase que os mitos diluvianos relatados foram criados por contaminação com o cristianismo.
Sobrariam os exemplos euro-asiáticos. Aqui cabe uma observação que muitas vezes escapa ao leigo (caso de Eusébio): essas sociedades citadas (indiana védica; sumério-mesopotâmica e sucessores; grega e escandinava) tem ligações ancestrais.
Grupos indo-europeus que saíram do Cáucaso milhares de anos atrás ocuparam (simultaneamente) a Mesopotâmia, a Índia, a Grécia, boa parte da Europa e o Báltico. Há inúmeras similaridades (na língua, na religião e na cultura) que atestam isso. Mas também há diferenças (decorrentes do tempo em que se separaram e da integração com outros povos).
É curioso que uma dessas semelhanças seja justamente o dilúvio. Para que ele fosse preservado em comum entre as sociedades herdeiras dos indo-europeus, seria necessário que eles tivessem sido submetidos a esse suposto desastre ANTES de se separem em grupos migratórios... Isso levaria o evento para alguns séculos (ou milhares de anos) antes das primeiras civilizações.
Pessoalmente não acho absurdo que o dilúvio seja a herança de um desastre causado pelo fim das glaciações no norte da Europa e Rússia asiática (norte). Costuma-se relatar que esse evento (o fim das glaciações) deu-se de forma gradual, mas isso não quer dizer que em uma determinada localidade o evento não possa ter sido súbito a ponto de produzir grandes inundações. Na verdade, as próprias migrações poderiam ter sido estimuladas por esse desastre ancestral. As implicações simbólicas disso foram inicialmente formadas numa mesma época; depois adaptadas à mitologia que se formou posteriormente.
Especulativo? Sim, sem dúvida. Mas pode explicar porque o dilúvio aparece em tantas culturas e não em outras, relativamente próximas (Egito antigo, por exemplo).
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Sobre Deuses Astronautas.
Está aí um assunto que merece uma abordagem desapaixonada.
O que há realmente de absurdo na hipótese de alienígenas terem visitado nosso planeta, contatado nossos ancestrais e dado origem a toda simbologia religiosa politeísta como nós conhecemos?
Pessoalmente, acho que nenhum. Claro, sobra o fato que não basta plausibilidade. Tem de haver evidência e ela é frágil. Mas vamos nos limitar por enquanto à plausibilidade.
De onde veio a crença nos deuses? Por que críamos religiões – politeístas a princípio e monoteístas posteriormente?
A hipótese de que alienígenas são a origem disso é razoável (isso, mais que qualquer outra coisa, é o motivo do sucesso de Daniken; sua hipótese é bastante razoável. Tivesse se limitado à hipótese e não tentado formular uma complexa teoria pseudo-histórica-antropológica seria mais respeitado). Ancestrais nossos, primitivos em sua tecnologia, vem alienígenas dotados de “poderes” e tecnologia assombrosa. Impressionados, adoram tais seres como Deuses. Criam monumentos exóticos em sua homenagem (pirâmides, por exemplo) e formulam mitos que ligam seu passado ao daquelas criaturas.
Nada nisso fere qualquer disciplina científica. Os alienígenas, nossos visitantes, não têm relação alguma com nosso processo evolutivo (mesmo que tivessem tido, algo que comentarei a seguir, a evolução em si não seria posta em xeque). Idem nossa história (ela continuou depois que eles se foram; tomou rumos próprios). Física, matemática, química, biologia, antropologia... Qual disciplina aqui é ofendida com a hipótese?
Ora, porque eles não retornaram mais vezes? Viagens inteplanetárias, pela longa distância, são difíceis de serem repetidas. Além disso, eles podem nos visitar com intervalos regulares em períodos longos. Por exemplo, de cinco em cinco mil anos. Imaginem que vieram aqui na aurora da formação dos primeiros credos politeístas (uns 5 mil anos passados). Foram embora e voltam em breve...
Por que não deixaram evidências? Talvez tenham deixando e nós não tenhamos encontrado (ainda). Provavelmente, porém, não quiseram deixar, para que não interferisse em nossa história. Como pesquisadores de vida natural que procuram não interferir (exageradamente) no habitat de seus pesquisados.
Vieram antes? Possível; depende do interesse. Poderiam ter interferido em nossa história evolutiva? Assunto espinhoso. Mas não tão polêmico assim. Imaginem alienígenas que, cinco milhões de anos atrás, verificam a presença, na África, de diversas espécies de primatas pré-humanos com inteligência limitada (pouco maior que a de um chimpanzé moderno). Daqueles grupos, um em particular evoluiu de forma a chegar no homo sapiens (150 mil anos passados). Mas é perfeitamente possível que nenhum deles tivesse atingido isso (chegado a produzir descendentes com inteligência criativa). Nosso planeta seria, no presente, povoado de primatas de inteligência reduzida. Isso é absurdo? Quem pensar o contrário, está supondo que obrigatoriamente “alguém” dirigiu a evolução para produzir uma espécie inteligente (adquirir inteligência não é um atributo evolutivo como outro qualquer?).
Ora, vamos supor (lembrem-se, tratamos de hipóteses) que esses alienígenas notaram uma espécie com potencial superior às demais. Nessa produziram um refinamento genético qualquer, que levaria seus descendentes a produzir, COM MAIOR GRAU DE CERTEZA, primatas inteligentes.
Absurdo? Claro que não. Ora, ou homem evoluiu por acaso (perfeitamente possível) ou sob interferência externa (idem). Ele não estava fadado a surgir. A não ser para certos teístas. E essa interferência não “destrói” qualquer premissa evolutiva. Nós não poderíamos modificar a matriz genética de um chimpanzé (senão hoje, mas no futuro) e produzir chimpanzés que andem sobre duas patas (pernas)? E será que daqui a 5 milhões de anos, alguém, no futuro, que não estivesse ciente dessa modificação anterior, teria como nota-la? Duvido.
O primeiro problema dessas suposições é que elas não escapam à navalha de Ockham. Isso é tão óbvio que nem precisa ser comentado. O que muita gente esquece é que a navalha não elimina alternativas (no sentido de destruir hipóteses); apenas lhe diz para não multiplicar explicações quando há uma fácil (e provável) ali na esquina, dando sopa.
Então especular sobre uma alternativa, procurar evidências dela e estuda-la com afinco (coisa que Däniken, excessivamente preocupado com dinheiro, obviamente não faz) não é crime. E nem idiotice congênita.
Claro, alguém vai chegar e dizer: onde você colocou alienígena, em seu texto, substitua por fadinha do dente. O resultado é...
Trata-se de uma crítica injusta. Um ser mágico, como uma fada, é uma entidade imaterial e imensurável. É uma criação de nossa imaginação, ligada a antigos credos animistas. Um ET é, antes de um mito moderno, uma possibilidade cientificamente plausível (pode haver vida fora da Terra; viagens interplanetárias podem ser realizadas). Ou seja, um ET PODE SER tão fantasioso quanto uma fada, mas, ao contrário dessa, há a possibilidade tangível que possa ser provado real no futuro.
O ponto mais frágil de minha suposição não é esse. É o começo: supor que as crenças politeístas surgiram do contato com alienígenas. E antes, nossos ancestrais criam em quê?
Segundo a antropologia, a evolução das sociedades acompanhou uma evolução das manifestações religiosas: começamos no totemismo, atribuindo às forças da natureza ou entes animais um caráter sagrado. Depois, passamos para o animismo, em que emprestamos o sagrado a nossos ancestrais; e ao culto deles. O animismo não rompeu com o totemismo. Incorporou-o de forma que o espírito do ancestral regula as forças naturais (candomblé, por exemplo).
A multiplicidade de espíritos ancestrais levou, de forma gradual, a que alguns desses fossem mais “adorados” que outros. Surgiu o politeísmo, que também incorporou concepções anteriores totemistas e animistas. As três formas subsistem fortemente no hinduísmo e no xintoísmo, por exemplo.
Ou seja: o politeísmo não precisava de um gancho qualquer. Era um processo natural. Os alienígenas podem ter sido a causa. Mas não seriam necessários para fechar esta equação. Mais uma vez, navalha de Ockham.
Dito isso, reafirmo minha colocação anterior: é possível levar ao ridículo as teorias danikeístas por suas conclusões precipitadas (e pela carência de provas). Mas a premissa dessas teorias não é absurda. Apenas não pode ser provada (ainda?) a contento.