Caro Derfel
Não vou pedir que me provem a não-existência da conspiração grega. Embora eu já tenha comentado anteriormente a respeito da dicotomia cristã, a minha afirmação me obriga a demonstrar a fundamentação dos meus argumentos.
Nos primeiros 50 anos da história do cristianismo (150 a 200) dois tipos básicos de Jesus Cristo existiam. O primeiro surgiu da infiltração cristã no gnosticismo hermetista pagão, do Egito. Daí o gnosticismo cristão. Esta forma de expressão religiosa era simpática ao anti-judaísmo reinante, pois considerava o deus de Israel um impostor ou o próprio diabo. Nesta versão, Jesus Cristo não nascera de uma virgem, não morreu na cruz e tampouco era um ser físico. Pregava uma mensagem horizontal, isto é, como o Buda, todos poderiam tornar-se Cristo. Bastava que descobrissem a verdade que jazia dentro de si mesmos.
“[...]. Porém, conhecer-se no nível mais profundo é, segundo os gnósticos, simultaneamente conhecer Deus; esse é o segredo da gnose. Um outro mestre gnóstico, Monoimus, diz: Abandone a procura de Deus, a criação e outras questões similares. Busque-o tomando a si mesmo como o ponto de partida. Aprenda quem dentro de você assume tudo para si e diz,’Meu Deus, minha mente, meu pensamento, minha alma, meu corpo’. Descubra as origens da tristeza, da alegria, do amor, do ódio [...] Se investigar cuidadosamente essas questões, você o encontrará em si mesmo.” (PAGELS, 1995, p. 17).
O gnosticismo cristão era a condenação total da criação. Trazia no encratismo (continência sexual) a questão da superioridade da virgindade ao casamento. O encratismo rejeitava o consumo de carne e vinho e entendia que a procriação era um mal, em princípio oriundo da “erva amarga”, o casamento. Era dever do homem evitar lançar mais almas no desditoso mundo da matéria. A criação do Homem foi um mal que o deus de Israel trouxe ao mundo.
A outra versão, que se tornaria a ortodoxa, muda tudo. Ela era contrária a esse princípio de liberdade interior porque este não atendia às suas expectativas políticas, servindo apenas às classes altas e mais intelectualizadas. Almejava o todo e não prescindiria das classes baixas, justamente aquelas que estavam se deixando seduzir pelo proselitismo judeu. Um judaísmo grego era inevitável.
Portanto, esta versão criara um Jesus Cristo do povo, que não só preservasse o deus de Israel, “A unidade e a existência do cristianismo dependiam do Antigo Testamento, que preparava a humanidade para o dom do Espírito.” (IRINEU cit. por DANIÈLOU, 1966, p. 129) para garantir a posse do Antigo Testamento, mas que esse Jesus fosse também o sofredor dos sofredores, o salvador da Humanidade. Esta versão exigia sacrifícios e obediência incondicionais prometendo a salvação somente na outra vida. Para garantir o sucesso dessa história torta muita adaptação foi necessária para que ela não perdesse o apoio das classes altas. Todavia, a versão gnóstica, em suas variantes, jamais deixou a versão ortodoxa em paz; perseguindo-a como uma sombra.
“O meio século que vai de 150 a 200 marca assim um momento decisivo do cristianismo. Continua precária a situação jurídica dos cristãos. Importuna-nos as calúnias populares. Perseguições abrem novas brechas. Romperam, no entanto o gueto em que os quiseram encerrar. Daqui por diante não mais se pensará ver neles como uma pequena seita oriental. Como dirá Tertuliano, enchem o fórum, os banhos, os mercados, as escolas. Não têm motivos para se desvincularem de uma civilização que apreciam. Dela recusam apenas as perversões. As violências do apocalipse judeu-cristão, os exageros do encratismo não estão inteiramente apagados. Pertencem no entanto aos assuntos do passado. Novo tipo de cristão surgiu e esse pretende unir os valores do helenismo e a fé do cristão. Está fadado a suscitar as grandes figuras do início do III século.” (DANIÉLOU; MARROU, 1966, p. 151)
A reação a uma história absurda "calúnias populares" são tão antigas quanto o próprio cristianismo. Segundo eles, as classes médias altas já se mostravam familiarizadas com a nova versão de Jesus Cristo e sua história. As classes baixas não freqüentavam o fórum, os banhos, os mercados e muito menos as escolas. Fizeram uma composição com os valores das sociedades helenísticas. Tanto a rigidez gnóstica quanto a rigidez mosaica eram nefastas ao propósito ortodoxo. Realmente é no século III que surgem as maiores figuras do mundo cristão.