A interpretação de Donini de que foi o cristianismo que absorveu o estado romano pode ser observada com o cruzamento de outras fontes. A diferença de comportamento dos cultos exemplificados por Toynbee ─ Cibele, Ísis, Mitra e Doliquéia ─ já demonstra um planejamento pré-existente de um projeto político e social a ser implantado por intermédio de uma nova cultura, isso bem antes de o cristianismo chegar ao poder imperial. Religião alguma procedia assim.
“Níveis cada vez mais estratificados da hierarquia institucional iam consolidando internamente as comunidades e regularizando a comunicação do que Irineu chamou de “igreja católica espalhada por todo o mundo, até os confins da terra”- uma rede de grupos que ia se tornando cada vez mais uniforme na doutrina, no ritual, no cânone e na estrutura política.” (PAGELS, 1995, p.123)
PAGELS, Elaine. Os Evangelhos gnósticos. São Paulo: Cultrix, 1995.
A aparente mania de grandeza de Irineu, que absolutamente não correspondia a realidade, era marketing institucional. O objetivo era o poder e tudo faziam para impressionar e preparar o terreno para isso. O cristianismo precisava livra-se do ressentimento anti-romano, explícito no Apocalipse de João, herança da panfletagem subversiva do primeiro século na Ásia Menor, e do repúdio do gnosticismo pelo deus de Israel porque precisavam do Antigo Testamento para dar prosseguimento ao intento. Por isso as idéias gnósticas viraram heresia.
“O século II da existência da Igreja Cristã já mostra todas as linhas da evolução no sentido da reconciliação com o Estado e a sociedade.” (HARNACK cit. por FROMM, 1978, p. 55)
FROMM, Erich. O dogma de Cristo. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
Era uma correção de rumo tendo em vista a abordagem derradeira ao poder imperial.
“A Igreja Católica percebeu como acelerar e fortalecer, de forma magistral, esse processo de transformação da acusação a Deus e aos governantes numa acusação do próprio eu. Intensificou o sentimento de culpa das massas a ponto de torná-lo insuportável. Com isso, atingiu um duplo objetivo: primeiro, ajudou a afastar as acusações e a agressão das autoridades, desviando-as para as massas sofredoras; segundo, ofereceu-se a essas massas sofredoras como um pai bom e amante, já que os sacerdotes concediam perdão e expiação ao sentimento de culpa que eles mesmos haviam provocado. Cultivou, engenhosamente, a condição psíquica da qual ela e a classe dominante obtinham uma dupla vantagem: o desvio da agressão das massas e a segurança de sua dependência, gratidão e amor.” (FROMM, 1978, p. 60)
A Igreja a qual Fromm se refere é a Igreja una, a Igreja grega que antecede a Ortodoxa Grega e a Católica Romana. Portanto, o próprio cristianismo primitivo. É uma ilusão querer separar a Igreja uma do cristianismo do século II porque o cristianismo do século I nunca existiu. Fico com Bruno Bauer nessa conclusão
“Resta, no referente ao século IV, a admirável floração, função dos Padres da Igreja, tanto gregos como latinos. Não haverá inconvenientes em encará-los agora, e sob o ângulo da literatura. Sem dúvida, eles escrevem, alguns com grande abundância, e ouvintes atentos estenografam freqüentemente suas próprias palavras, a fim de assegurarem a publicação. [...]. Não há vida sem luta: nos séculos II e III, os primeiros escritores cristãos tiveram de polemizar contra os inimigos exteriores: após o triunfo, coube-lhes defender a fé contra a heresia e, ao mesmo tempo, instruir seus fies e guiá-los numa vida terrena semeada de emboscadas. O dogma, o ensino, a moral, eis os objetos de seus tratados doutrinais, de seus sermões e suas cartas. “ (AYMARD; AUBOYER, 1974, p. 62)
AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. História geral das civilizações. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1974.
Não existiram escritores cristãos no primeiro século porque o cristianismo ainda não existia. Se isso não é uma conspiração, que nome poderíamos dar?