Mark Twain havia dito que a diferença entre a ficção e a realidade é que a ficção tem que ser crível. O cristianismo do primeiro século é literatura pura, com Bauer havia concluído. Nada naquele é confiável, evidentemente, como personagens, datações, acontecimentos etc. Os escritores cristãos surgem somente no segundo século porque antes o cristianismo não existia. É óbvio que também por isso nenhuma outra fonte se ocupou dele e da figura de Jesus. Assim sendo, busquei a explicação para o surgimento do cristianismo nos acontecimentos históricos da época, sem me preocupar com as histórias da bíblia.
O surgimento do cristianismo é conspiracionista, sim. Conspira contra o domínio romano e contra o crescimento do judaísmo. A partir do final da Era Antiga os comerciantes de escravos italianos descobriram uma preciosa mercadoria: os gregos asiáticos, os anatolianos. Eram indivíduos que escravizavam também na Ásia Menor. Eles eram cultíssimos, refinados e especializados em literatura, artes, arquitetura, engenharia, agricultura, medicina etc.
A avareza dos comerciantes italianos inundou a Itália desses escravos característicos. No final do primeiro século 90% da população romana era de origem grega. Ouviam-se mais o grego do que o latim nas ruas de Roma. Foi o Cavalo de Tróia de Roma. Ex-escravos tornaram-se possuidores de fortunas, prestígio social e político que senador algum havia conquistado. Ocuparam cargos importantes de chefia no estado.
Foram esses escravos os responsáveis pela beleza e grandeza da nova Roma, a Roma imperial. Uma cidade muitíssimo diferente da rústica Roma republicana. Eram os anatolianos os mais bem preparados filhos da Hélade. O detalhe é que eles deixaram na Ásia Menor parentes e amigos que tramavam uma forma de virar o jogo. O sentimento anti-romano era mais evidente nas classes baixas, uma vez que interesses e novas possibilidades mostravam a outra face da mesma moeda aos gregos mais experimentados.
No primeiro século circulavam na Ásia Menor folhetos subversivos que expressavam o mesmo ódio e desejo de vingança do Apocalipse de João. Entretanto, esse tipo de linguagem desaparece logo nos escritos cristãos subseqüentes. Uma linguagem conformista e conciliadora com a autoridade imperial substitui a explicitação nada cerimoniosa do sentimento anti-romano. Evidência de uma mudança de estratégia na condução dos fatos.
Roma estava dominada e a reação grega aguardava o momento certo. Foi, justamente, na segunda metade do segundo século, sob o reinado de Antônio Pio (138-161), soberano muito tolerante com os cultos estrangeiros, que os propagandistas cristãos começaram a chegar à capital do Império, vindos, em sua maioria da Anatólia ou Ásia Menor. Marcião (Ponto, norte da Anatólia) chega em 140, Justino (Anatólia) em 150, Policarpo (Anatólia), em 155 e Hegesipo (Anatólia), em 160. Praxéas (Cartago), Epígono (Anatólia), Teódoto (Anatólia) para lá se dirigem. No final do século II são muitas as escolas cristãs de Roma.
Não foi por acaso que as primeiras igrejas cristãs surgiram nas cidades cosmopolitas e de negócios da Ásia Menor, como Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Sardes, Filadélfia, Tiatira e Laodicéia, onde tais conhecimentos eram difundidos. Essas cidades, localizadas estrategicamente no litoral ou em importantes rotas de comércio no interior, sofreram muito com as pilhagens, com as indenizações de guerra e com a usura italiana. No entanto, ali estava a fonte de custeio para o início do processo de implantação da nova cultura. Sim, o cristianismo é uma cultura religiosa e não uma simples religião. Daí o seu sucesso e a continuidade que somente os gregos poderiam lhe dar.