Acho que em alguns casos não é um apelo a autoridade no sentido de "Einstein acreditava então Jeová/fantasmas existem, tentem refutar EINSTEIN agora, bitches", mas algo mais leve, como "se Einstein acreditava, então significa que pessoas inteligentes e cientificamente competentes podem crer nessas coisas e portanto são crenças respeitáveis e verossímeis". Misto de apelo à piedade e autoridade.
Mas ser inteligente, de modo destacado, não é requisito necessário para ser cientista. Por outro lado, para ser cientificamente competente é necessário ser descrente. Pensar cientificamente é, em essência, o mesmo que descrer. O que a figura mitológica "cientista crente" incorporada em penetras no universo científico prova para crentes (...prova para crentes... são eles próprios enfiados no mundo científico para justo essa finalidade, conscientemente ou não, mesmo quando só uma carreira acadêmica a seguir numa sociedade que, pode-se dizer, até acidentalmente, senão pela existência prévia de cientistas, oferece tal caminho, mas um cientista não existe em função de nada disso) não é que as crenças são respeitáveis e verossímeis; a figura mitológica "cientista crente" prova que ciência não é boa o bastante para contrapor-se ao que se afirma nas doutrinas mágicas. E eles declaram isso o tempo todo com todas as palavras; e eu já apontei isso mais de uma vez. Se não se entende a base argumentativa do oponente, como fica o debate?
A propósito, vou emendar numa postagem anterior porque é de uma falácia monumental o que se vê ali.
Jetro, mesmo que Albert Einsten fosse teísta, qual a diferença?
Acho que já sabemos a resposta, né Juca? Não digo que seja o caso do Jetro, mas a maioria das pessoas que levam a sério sua religião possuem uma mentalidade que as torna predispostas a acatar argumentos de autoridade. Para essas pessoas, "Rabino Fulano disse", ou "de acordo com Santo Beltrano" são argumentos fortes e dignos de consideração. O corolário disso é que se você encontrar uma contradição nas opiniões dessa autoridade, ou uma mudança de ideia, isso tende, na mente dessas pessoas, a enfraquecer toda a estrutura da sua argumentação. Essas pessoas tendem a imaginar erroneamente que o mesmo acontece na ciência. O fato é que pouco importa para a Natureza se Newton era cristão ou Einstein era agnóstico, da mesma forma que é irrelevante para a química o fato de Lavoisier ter sido coletor de impostos, para a computação o fato Turing ter sido gay, ou para a engenharia espacial o fato de Hermann Oberth ter sido nazista.
Tô gesticulando com as mãos e falando bem devagar: Ooolha beeem, o binômio é CIÊNCIA X MAGIA.
Não é ciência X natureza. O que tem que ver que a natureza não mudaria se Newton fosse cristão ou Einstein agnóstico? É uma maneira de disfarçar dizer que a realidade não muda em função de nós humanos, como se isso significasse alguma coisa aqui? Solipsismo? Claro que não, oras, mas a maneira como ELE vê a realidade; não interessa como a realidade se comportaria diante de Newton ou pensaria dele, é como ELE se comporta diante de e vê a realidade, é isso que influencia sua competência científica, não a cegueira com que seria capaz de acreditar em duas coisas antagônicas simultaneamente; e é o que está em questão aqui. Além do que, Newton não foi cientista, oras; não tinha como ser; nem Lavoisier; nem...; o menino Popper não tinha nem nascido ainda! Ou já existia a instituição falsificacionista à época? É preciso ter mais atenção...
Não é ciência X fisco também. Mas o que poderia ter de relação contrapositiva uma coisa com a outra, por todo o santo ofício?!!!!!
--Ah, Lavoisier coletava impostos para a coroa...
--Ih, isso devia prejudicar o discernimento científico dele... já diz a sagrada escritura do fisco que deus fez tudo do nada, como ele poderia ter demonstrado a conservação de massa?
Ora, francamente, o máximo que isso afetou a cabeça dele cientificamente foi, positivamente, no conceito de balanços contabilistas e, negativamente, na sua decapitação, que seifou, prematuramente, sua atividade científica.
Não é ciência X homossexualismo.
--Turing foi gay sim, e daí?!
--Daí que isso poderia afetar o discernimento científico dele...
--M...m...m...as, com todos os diabos, de onde você tirou isso, que relação vê entre uma coisa e outra?!!
--Ora, ele era viado, então... ah, não sei, talvez tenha algum fundamento bio-hormono-neurológico correlato à tendência homossexual, sei lá!
--!!!!.
Não é ciência X nazismo.
--O Oberth era nazista, um cara do mal, não podia ser cientista, cientista é gente do bem...
--Mas... santo deus! Você parece que leu muito Boccage por hoje, cara, só está contando piadas!
--Nãããão, é muito sério o que digo, você não vê que ciência é coisa do bem, que traz benefício pro homem; só se o homem usar errado que funciona pro mal, mas ciência é coisa do bem, um cara mal não pode fazer, você não acha isso?!
--Ééééé rapaz!... Agora que você falou assim explicando bem desse jeito... eu quase me deixei levar por essa besteirada toda!
--Mas não é assim?
--É claro que não! Ciência é resultado de processo cognitivo realista em relação à realidade, de pensamento rigoroso sobre fatos reais do universo objetivo. A única manifestação de processo mental que é oposta a isso é a crença, o pensamento mágico.
--Aaaah, mas você está errado porque eu conheço um cara que é cientista, é mesmo, tem diproma e tudo, estuda feito um condenado, faz pesquisa, já revolucionaou a ciência várias vezes e é creeeeente até de dar dó, como diz o Feynmam do Hawking.
--Mas o Hawking não crê em porcaria nenhuma.
--Ah, é, ...mas ele antes dizia que cria.
--É mesmo, o que será que houve?... Será o mesmo de sempre?
Normalmente usam dessa falácia de correlações exemplares descabidas para fugir ao fato. Ardil falacioso denigrente para o articulador, para tentar induzir sofisticamente o erro: "não importa se ele é gordo, viado, pilantra, mulherengo, fofoqueiro, bárbaro, tirano, nazista, fascista, bolchevique, bandido, assassino, genocida... ...crente... (jogado assim no meio, displicentemente, como se fosse comparável às outras características apontadas, no que concerne à contradição explícita e nítida em questão), se usar o guia do maravilhoso sacrossanto sem pecado fazedor de maravilhas método científico, aprovado pelos cânones isentos de todo o erro último -- porque ele é à prova de falhas últimas, devido ao seu divino sublime atributo de santa humilde recorrência inspecionadora de si mesmo, e assim mostram-nos nossos santos senhores filosofistas da ciência --, estarás salvo do erro final, pois que o método é humilde e faz com que nos homens surja a atitude virtuosa da humildade da autoadmoestação científica constante e honesta e ela livra de todo o mal da falha última". Amém.
Esse é o discurso padrão de qualquer crente cristão (na verdade, nem sei, tão discrepantes as diversas abordagens sectaristas): "não importa nada na sua vida pregressa, se você entregar seu coração para o salvador, de todo o coração, num instante, está salvo de toda a sua carga negativa".
Ooooooora! Um pouco mais de humildade e honestidade científica então, oras! Ciência está só naquela fronteira a qual só se atravessa por meio da dispensa de uma ou mais crenças. Se alguém já abriu uma passagem por ela, outros podem entrar e apreciar a paisagem mas *só a abertura da travessia é científica*, não o turismo. Só se faz ciência passando por cima de cadáveres de crenças porque a única coisa que nos mantém na acientificidade são nossas crenças. Pesquisa não é ciência. Ciência é olhar para a realidade e ver que o que se poderia supor sobre ela, não é. Inventem a fuga ad hoc que quiserem, que será só uma crença a mais, como a ridícula "um crente pode não fazer ciência aqui, onde sua crença interferiria, mas pode fazer ali ou lá, onde sua crença não interfere", como se fosse uma simples escolha bonitinha de sabor de pizza. Santo... como alguém pode ter a desfaçatez de apresentar isso como argumento?! Mas essa também, como todas as crenças, terá que ser esmigalhada por pisadas científicas quando a distinção arbitrária entre "ciências" se desvanecer pelo inevitável processo de evolução para a física por que todas passam. Quando a única ciência que restar a fazer for *"essa aqui"*, onde a crença do indivíduo é o obstáculo insuperável, de onde ele não poderá fugir com desculpas patéticas; quando não mais puder fingir para si mesmo que existe chance de fuga entre tomar pílulas grandes e gotas diluídas como uma criancinha amendrotada protegida pelo papai e pela mamãe.