É possível reconstruir o proto-indo-europeu?
Vou só citar um exemplo simples, tendo em vista que o Fernando Silva já mandou bala no tópico
.
Mas vai ser moidinho, mostrando o método.
O esquema usado é mais ou menos o mesmo que usa-se para reconstruir o genoma de um ancestral comum de diversas espécies. Sempre deve-se considerar a máxima parsimônia (não colocar coisas desnecessárias ou improváveis), e se necessário mudar a reconstrução para englobar mais idiomas.
Vou usá-lo a seguir, para "reconstruir" o latim. Sabemos que castelhano, português, francês, italiano, etc., são todos idiomas de parentesco próximo, certo? Então, pega-se uma palavra qualquer e vê-se como é nos idiomas:
/kava'lu/ [pt], /kaBa'Lo/ [es], /xeval'/ [fr], /kal/ [ro], /kava'l:o/ [it]
Aviso sobre a notação. A escrita acima é fonética. Dois pontos, após uma letra, significa que ela é pronunciada mais longa; apóstrofo indica a sílaba tônica. Usei
x como o nosso
ch, B como a fricativa bilabial do castelhano (pra gente soa como algo entre
b e
v), L como o nosso
lh.
Comparando as palavras, nota-se que são prováveis parentes, cognatos. Nota-se que aonde os outros idiomas neolatinos usam /ka/, o francês usa /xe/. Isso é nítido também em outras palavras, como cher (compare com "caro"), charme (compare com carmim), chef (compare com cabeça ou com capuz).
(Sim: os três casos são de reais cognatos, mesmo com o sentido mudado.)
No original, em latim, pode ser
1. /xe/ mudando para /ka/ em todas as neolatinas; ou
2. /ka/ mudando para /xe/ somente no francês; ou
3. Uma sílaba desconhecida que muda para /ka/ em todas as neolatinas, menos o francês, no qual muda para /xe/.
Pela máxima parsimônia, adotamos a hipótese 2: somente o francês executou uma mudança no som, e o original é /ka/, mesmo.
A segunda consoante (para nós,
v) dá um pouco mais de trabalho: ela é
v no português, no francês e no italiano;
B no espanhol, e inexistente no romeno. Como uma consoante "sumir" entre vogais é mais comum que "aparecer", podemos supor desde já que o latim apresentava alguma consoante, que o romeno excluiu com o tempo.
Sabemos que o latim não tinha
v, entretanto: nas neolatinas, ele surge da lenição de
b e da fortição de
w (grafado no latim como < u >).
Lenição é quando uma consoante é trocada por outra mais "fraca", mais fluída: consoantes surdas viram sonoras, oclusivas viram nasais ou fricativas, fricativas viram semivogais ou somem. Ocorre especialmente entre vogais, como é o caso. Por outro lado, fortição é o processo inverso, que normalmente ocorre no começo e no fim de palavras.
Considerando o ambiente V_V (entre vogais), podemos supor que o
v surgiu da lenição de uma consoante oclusiva, sonora, de ponto articulatório bastante próximo:
b. Então,
1. Podemos dizer que esta consoante virou
B nas neolatinas em geral, mais tarde
v em todas menos o espanhol, e sumiu no romeno.
Só que o espanhol tem mania de pegar
v e transformar em
B; mesmo quando o
v surgiu de fortição de
w. Então, altera-se a hipótese para considerar isso: b>v em todas, mais tarde v>B no espanhol e v>0 (zero) no romeno.
A vogal de cav
alo é igual em todas, então é de se supor que seja a do latim.
Quanto ao
l:
l entre vogais tende a sumir na transição do latim pro português. Mas somente o simples. Pelo método acima (vou resumir), o
l: (consoante longa) do latim se conservou no italiano, simplificou para
l em português, romeno e francês, e virou
L no espanhol.
O
us do final se perdeu no romeno e no francês, e se simplificou para
o no português, espanhol, e italiano (mais tarde voltando a ser
u no português - sim, mesmo que a gente grafe como
o).
No final das contas, obtemos a palavra /kaba'l:us/ como candidato mais sério ao original latino.
Como podem perceber, trabalha-se de trás para a frente, é uma espécie de "engenharia reversa".
As mudanças atribuídas devem ser gerais, e funcionar em outras palavras. Se b>v em ambiente sonoro na transição latim>português em "cavalo", é de se esperar que mude em outras palavras também, como "árvore" (arboros), "treva" (tenebra), e por aí vai.
O latim é o idioma mais fácil de se fazer isso; conta com uma penca de "filhotes", conta com literatura de um grande período de tempo, e usava um alfabeto bastante fonético. Muito se escreveu em e sobre o latim.
No caso do proto-indo-europeu, a coisa fica difícil. Primeiro, porque é um idioma muito mais velho, houve tempo para muito mais mudanças. Segundo, porque não era escrito. Para reconstruí-lo, as três melhores fontes são o latim, o grego e o sânscrito. Há também o eslavônio antigo, do qual há registros, mas são relativamente poucos, não ajuda muito. Uma versão escrita do proto-germânico, em compensação, ajudaria e muito.
Trata-se de um daqueles casos em que a gente reconstrói idiomas mais recentes para com eles reconstruir um mais antigo: de trás para a frente, novamente.
Claro que reconstruir o PIE não é nada fácil, mas isso é algo que me parece interessante e desafiador
(por isso quero fazer!).