qual era a diferença entre ç e ss foneticamente?
<c> e <ç> eram /ts/. Então, "acontece" do português da época era /acõtétse/. <ss> tinha o mesmo som de hoje, /s/.
A diferença não era só fonética (de pronúncia), mas também era fonêmica (a pronúncia diferente criava palavras diferentes). Tô pensando num par mínimo (duas palavras que difiram só por isso), mas agora não me vem à cabeça. Mas isso fica bem claro quando você nota que o nome chinês Kong Fu Tzu foi adaptado como Confúcio e não como *Confútso, indicando que o português tinha nativamente o som.
Algo bem similar ocorreu com <z>, que soava como /dz/, ao contrário de <s > que soava como <z>. Pra essa eu tenho par mínimo - "cozer" /codzer/ (cozinhar) e "coser" /cozer/ (costurar) ainda soavam diferentes. Meu palpite é que os verbos "cozinhar" e "costurar" foram criados pela população depois dessa distinção ter caído, justamente porque as duas palavras - dois verbos, conjugados iguais - passaram a soar iguais em um contexto semântico (tarefas do lar) que permitia o uso de ambas.
Mas não era só /ts/ e /dz/ que o português tinha...
(Aviso: ŝ e ẑ representam os sons iniciais de "chapéu" e "jóia" no português atual. Não vou usar IPA porque é meio técnico demais.)
Preciso pesquisar direito, mas na época < x> representava três sons distintos: /ŝ/ (como hoje), /gz/ ("exemplo" provavelmente era pronunciado /egzẽplo/) e /ks/ ("excelente" provavelmente era pronunciado ou como /ekstselẽte/ ou /ekselẽte/ - aqui depende, pode ter existido alguma regra anterior que proíba duas africadas seguidas). /gz/ foi consistentemente simplificado para /z/, /ŝ/ continuou igual, e /ks/ foi simplificado pra /s/ exceto em poucos casos, na maioria latinismos, como "tórax".
Em compensação, <ch> soava diferente dos três, como /tŝ/ (esse "ŝ" é o som que a gente usa pra "xícara"), bem parecido com o uso que atualmente o castelhano e o inglês fazem pro dígrafo (vide cas. "mucho" e ing. "church"). Somente com a queda das africadas que /tŝ/>/ŝ/, o que deu a xance[sic] pras pessoas escreverem xave[sic] e outros miguxeses
< g> antes de < e> e < i> era pronunciado /dẑ/, enquanto <i/j> era usado pra /ẑ/. Aqui tem um problema, já que a letra < j> surgiu como algo diferente de < i> só no fim da Idade Média... então, /ẑ/ foi muitas vezes grafado como < i>, independente da época da queda das africadas.*
Resumindo, eram no mínimo dez sibilantes - /ts/ /dz/ /tŝ/ /dẑ/ /ks/ /gz/ (africadas) e /s/ /z/ /ŝ/ /ẑ/ (fricativas). Mais tarde, só sobraram as quatro fricativas, já que /ks/ no português atual é beeeeeeeem marginal e não se adapta à fonologia atual da língua (já viu gente pronunciando "táxi" como "táquisse"? Então.)
O que eu falei aqui é tudo quase certo, há bastante consenso nisso. Assim como o fato que elas provavelmente caíram juntas - afinal de contas, uma só regra ("transforme africadas em fricativas do mesmo ponto de articulação") já basta pra descrever a mudança. Só que eu não quero saber apenas
como, quero saber também
quando.
Minha hipótese é que isso ocorreu depois das primeiras convenções ortográficas na escrita do português, mas antes de Pombal ter instituído o português em larga escala aqui (antes disso a gente até era colônia portuguesa, mas o populacho falava mais nheengatu e geral paulista que português). Ou seja, algo entre ~1400 e ~1700.
*Obs: interessante notar, o português brasileiro "ressucitou" os sons [tŝ ] e [dẑ ], mas como alófonos (pronúncias alternativas) de /t/ e /d/ antes de /i/ - vide as pronúncias de "digo", "diário", "tiara" e "tinta". E não é nem um pouco difícil de virarem fonemas de novo, há três forças que contribuem para isso: neologismos usando esses sons sem /i/ depois, empréstimos de línguas sem essa restrição (vide "tchau" < it. "ciao"), ou mesmo queda dos /i/ em hiatos (neste caso, "tiara" e "tara" passam a ser um par mínimo, /tŝara/ e /tara/).