Acho que captei a raíz da dúvida do Cyberlizard sobre esse assunto.
A questão estaria no chamado "valor de troca" das mercadorias: embora as máquinas amplifiquem a produção de bens, cada bem terá um "valor de troca" menor, ou seja, poderá ser trocado por menos bens (não industrializados) do que antes.
Isso aí é um simples problema de competição entre o novo e o obsoleto, que todos conhecem. Quando um novo método, máquina ou profissão leva vantagem em cima de outro mais antigo, o método antigo não conseguirá mais lucrar como antes, jogando no chão a renda de todas as pessoas que antes viviam dele. Esse é o problema por trás do surgimento das máquinas. Vou explicar melhor utilizando 2 exemplos: o exemplo dos caçadores do neolítico e o exemplo real dos artesãos ingleses:
Caçadores do Neolítico
Já sabemos o exemplo: 1 caçador, utilizando uma lança tosca, consegue caçar 1 coelho em 18 horas de trabalho. Ele resolve então fazer uma poupança: ao invés de comer 1 coelho por dia como sempre fazia, resolve comer 1 coelho em 2 dias. Com o dia extra sem caçar, ele se dedica à confecção de um arco e várias flechas. A partir daí, usando o arco, ele consegue caçar agora 4 coelhos por dia. Resolve então "contratar" um outro caçador, que irá utilizar seu arco, ficando com 1 coelho e lhe cedendo os 3 restantes.
Com isso, o caçador empregado continua tendo uma renda de 1 coelho, como tinha antes. Ele não é "explorado".
Porém, surge uma nova questão: o "valor de troca" do coelho agora será de apenas 25% do valor anterior ao arco (supondo uma relação BEM simples de determinação do valor pelo trabalho médio requerido, o que é válido em uma sociedade pequena, simples e primitiva).
Vamos incluir uma terceira pessoa no exemplo: um agricultor. Em 18 horas de trabalho, ele obtém em média 2 quilos de trigo. Antes do arco, cada coelho poderia ser trocado por 2 quilos de trigo, pois cada um destes levava 18 horas de trabalho para ser obtido.
(REPITO: estou aqui supondo uma relação ultra-simplificada de determinação do valor de troca unicamente pelo trabalho humano médio requerido, o que é plausível em uma sociedade pequena, simples e primitiva).
Após o arco, o "valor de troca" do coelho caiu para 25% do anterior, pois nas mesmas 18 horas são produzidos 4 coelhos.
(Na verdade, para que o valor caisse para 25%, seria necessário que o uso do arco fosse disseminado, para que o mercado de coelhos ficasse em um sistema concorrencial quase perfeito. Em havendo poucos arcos, como no nosso exemplo dado, o dono do arco poderia continuar trocando/vendendo os coelhos pelo mesmo valor anterior. Mas vamos supor, por questão de simplificação, que o valor de mercado do coelho seja realmente 25% do anterior.)
Nesse caso, embora o caçador empregado continue recebendo 1 coelho, como antes, caso ele queira trocar o coelho por trigo, ao invés de obter 2 quilos como antes, obterá somente 0,5 quilo.
Podemos dizer, de certa forma, que a renda do caçador empregado medida em coelhos permaneceu inalterada, mas sua renda medida em trigos (ou qualquer outro bem sem tecnologia na sua produção) caiu para 25% da anterior.
Caso o agricultor (seguindo o exemplo do caçador dono do arco) poupe e produza 1 arado melhor, de forma que ele passe a produzir 8 quilos de trigo em 18 horas (ao invés de 4 como antes), então a renda do caçador empregado, medida em trigos, voltaria ao patamar anterior: ele voltaria a poder trocar 1 coelho por 2 quilos de trigo.
Extrapolando: quando um determinado ramo de atividade é mecanizado, de forma que sua produtividade aumente, cada unidade (seja de bem ou serviço) produzida nesse ramo passará a comprar MENOS unidades dos ramos cuja produtividade se manteve inalterada. As pessoas que viviam desse ramo, e que não puderem incorporar a nova tecnologia, irão inevitavelmente falir. Elas terão que se mudar para outras atividades para que suas rendas, medidas em outros bens que não os desse ramo, não caia. É a velha questão da obsolescência.
Passemos agora ao motivo disso. Existe o motivo real, que todos conhecem, e existe o motivo imaginário, inventado por Marx e defendido aqui por Cyberlizard.
Motivo real
O caçador de coelhos, com a sua lança, era um "top de linha" no ramo de caça aos coelhos. Com a introdução do arco, a sua profissão de caçador de coelhos com lanças ficou obsoleta. Ele não poderá vender/trocar os coelhos caçados pela mesma quantidade de outros produtos como antes, devido à concorrência dos coelhos caçados à arco, que serão vendidos mais baratos (adotando o valor-trabalho, por questão de simplificação).
Ou seja, o caçador de coelhos PEEEERDEUUU. Sua profissão agora é obsoleta. Ele terá que procurar outra atividade onde não sofra concorrência do arco (para manter o padrão de vida anterior), ou terá que ser empregado do dono do arco, onde terá um padrão de vida menor EXCETO se as seguintes condições forem satisfeitas:
1- A incorporação de tecnologia aumente a produtividade geral, não apenas no ramos dos coelhos. Nesse caso, o empregado que produz coelhos manterá (ou melhorará) o seu "poder de compra geral" de antes, pois o barateamento será geral, e não apenas o seu produto se barateará enquanto o dos outros permanece caro.
2- Leis trabalhistas e sindicalizão: os caçadores "sem arco" se juntam em sindicatos, cartelizando a oferta de mão-de-obra exigindo maior quantidade de coelhos como salário. Ou então o chefe tribal determina um salário-mínimo em coelhos.
Explicação imaginária.
Marx afirmaria que o caçador sem arco terá uma queda na renda não porque sofreu a concorrência do arco, mas porque o dono do arco lhe "explora", no sentido de que ele continuaria gerando o mesmo valor anterior, mas o dono do arco lhe toma uma parte.Sabemos que isso é falso, pois o trabalho dele (1 coelho por dia) agora está valendo menos.
Resumindo: o poder de compra (medido em bens sem incorporação de tecnologia) do caçador empregado cairá 75% porque o produto do seu trabalho (coelhos) teve uma desvalorização de 75%, e não porque o dono do arco lhe toma 75% do produto do seu trabalho.
Em outras palavras: o caçador continua gerando 1 coelho por dia, mas o coelho vale agora 25% do valor anterior. Marx diria que ele produz 4 coelhos por dia (ignorando a contribuição da arco) e que o dono do arco lhe toma 75% de "sua" produção.
Entendido?
Na próxima postagem darei o exemplo real, ocorrido com os artesãos ingleses.