Aqui no Rio de uns 4 anos para cá o Eduardo Paes instaurou a ditadura da Saúde da Família, não é sempre que diretrizes governamentais são bem recebidas e acatadas pelo funcionalismo mas essa foi aceita de braços abertos pelas gerências, equipes médicas e administrativos; e por um muito bom motivo: parecem reduzir o trabalho, pelo menos num primeiro momento. No meu posto pediatras que atendiam uma média de 48 pacientes por plantão (contando que no meu posto todos os funcionários fazem "esquema", exceto os piões da faxina e da portaria) passaram a atender uma média de 20 crianças apenas.
Não sei se é assim em todas as áreas onde se assumiu esta panaceia admnistrativa, mas aqui no Rio a entrada da Saúde da Família me pareceu absurdamente perversa. Funciona assim: todas as unidades de atenção básica passaram a atender apenas e somente só um grupo de pacientes abrangidos por uma divisão geográfica
x, nenhum paciente consegue atendimento em posto que não o de referência para sua residência exceto se apresentar um comprovante de residência falso/de outra pessoa (nenhum paciente consegue atendimento ambulatorial sem apresentar comprovante de residência).
Resumo: já vi centenas de casos de pacientes que moravam a poucos metros do posto em que trabalho e que podiam se deslocar a pé para o posto de sua preferência e que por conta da sagrada saúde da família agora só conseguem atendimento em postos que ficam a cinco bairros de distância e que carecem de condução.
No prédio em que trabalho há duas unidades de saúde distintas, é comum pacientes da referência
x irem buscar atendimento no guichê da sua unidade e serem informados que a especialidade de que eles precisam (um pediatra, ou um gineco, por exemplo) não é disponível naquele estabelecimento, aí se dirigem ao guichê da minha unidade (que como já disse, funciona no mesmo prédio) e são informados que "sim, senhora, temos ginecologista e ele está de plantão e tem senhas sobrando mas, infelizmente a senhora mora uma esquina após a nossa cobertura e todo seu atendimento deve ser buscado só e somente só naquele guichê ali". É comum ver médicos passarem horas sentados nos banquinhos da unidade passando o tempo com fofocas ou joguinhos de PSP "por não terem atendimento" quando dezenas de pacientes têm o atendimento para aquela especialidade negados por morarem em ruas erradas.
Quando foi instaurado o sistema muitos pacientes ficaram felizes porque na fase de remodelação os atendimentos marcados passaram a ser realizados em poucas semanas quando duravam meses antes da entrada da saúde da família (óbvio, tava todo mundo sendo chutado pra lá e pra cá e ninguém conseguia achar o seu lugar) mas à medida em que as pessoas foram descobrindo qual sua unidade de referência e se acomodando nela os prazos passaram a ser os mesmos com a diferença de que não adianta mais correr atrás de um postinho que tenha mais médicos ou madrugar na fila pra tentar uma "desistência". Uma outra faceta perversa é que não há mais possibilidade de escolha do profissional, um paciente que foi atendido por um clínico que não lhe inspirou confiança não pode mais tentar um outro profissional.
A propaganda da Saúde da Família é de que colocar pessoas doentes para madrugar numa fila de postinho debaixo de chuvisco e frio é desumano, mas ao meu ver, e tomando o que tem sido feito no Rio, a própria estratégia miraculosa é de uma desumanidade muito maior, só que mais limpinha.
Eu admito que, como tudo no serviço público, boa parte da responsabilidade pela deficiência é de nós, servidores; por outro lado não comungo de forma alguma da turma do vamos privatizar esta bagaça. Uma das outras medidas que foram rigidamente aceleradas pela gestão do Paes foi a terceirização da Saúde (todas as novas unidades de atenção básica funcionam exclusivamente com pessoal terceirizado, desde a gestão...), e... que boa merda. Todos os revéses do funcionalismo público (relaxamento quanto à pontualidade, produtividade e frequência para mim são os pontos clássicos) são mantidos pelas equipes terceirizadas mas com muito louvor mesmo (costumam ser menos pontuais e produtivos ainda) e todas as vantagens do serviço público estatutário (controle do nepotismo, seleção por domínio de conhecimento específico, independência político-eleitoral...) acabam desaparecendo.
Essa matéria ilustra muito bem:
http://extra.globo.com/noticias/rio/posto-de-saude-da-familia-de-sepetiba-nao-tem-medico-limita-atendimento-de-pacientes-em-outras-unidades-3226768.html