Por que o novo decreto de Dilma não é bolivariano?
Há uma semana foi publicado aqui no Jusbrasil o seguinte artigo: "Afinal, o que é esse tal Decreto 8.243?". Texto escrito por Erick Vizolli. O artigo, quando publicado, teve o propósito de ajudar a entender a razão de tantos estarem tão preocupados com as implicações desse decreto para a democracia brasileira.
Em nome da democracia, leremos uma outra visão sobre o assunto. O texto foi publicado no site da Carta Capital por Leonardo Avritzer.
O decreto 8243 institucionaliza uma política que já existe e aprofunda a democracia na medida em que aproxima a sociedade civil e o Estado
A presidente Dilma Rousseff assinou, no último dia 21, um decreto que institui a Política Nacional de Participação Social. De acordo com o decreto “fica instituída” a política, “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”.
Com este objetivo o governo reforçou institucionalmente uma política que vem desde 2003, quando, ainda em 1º de janeiro, o ex-presidente Lula assinou a medida provisória 103, na qual atribui à Secretaria Geral da Presidência o papel de “articulação com as entidades da sociedade civil e na criação e implementação de instrumentos de consulta e participação popular de interesse do Poder Executivo na elaboração da agenda futura do Presidente da República...”
A partir daí, uma série de formas de participação foram introduzidas pelo governo federal, que dobrou o número de conselhos nacionais existentes no país de 31 para mais de 60, e que realizou em torno de 110 conferências nacionais (74 entre 2003 e 2010 e em torno de 40 desde 2011). Assim, o decreto que instituiu a política nacional de participação teve como objetivo institucionalizar uma política que já existe e é considerada exitosa pelos atores da sociedade civil.
Imediatamente após a assinatura do decreto iniciou-se uma reação a ele capitaneado por um grande jornal de São Paulo que, em sua seção de opinião, escreveu o seguinte: “A presidente Dilma Rousseff quer modificar o sistema brasileiro de governo. Desistiu da Assembleia Constituinte para a reforma política - ideia nascida de supetão ante as manifestações de junho passado e que felizmente nem chegou a sair do casulo - e agora tenta por decreto mudar a ordem constitucional. O Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), é um conjunto de barbaridades jurídicas, ainda que possa soar, numa leitura desatenta, como uma resposta aos difusos anseios das ruas.”
Sinopse. Nada a comentar.
Assim, segundo o jornal paulista, o Brasil tem um sistema que é representativo e este foi mudado por decreto pela presidente. Nada mais distante da realidade.
Será mesmo?
Em primeiro lugar, o editorialista parece não conhecer a Constituição de 1988, que diz no parágrafo único do artigo primeiro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
O mesmo pode ser dito do senhor Leonardo. Realmente todo o poder deve emanar do povo e não da articulação de movimentos sectários, quase sempre capitaneados por um ou mais partidos de esquerda.
Ou seja, o legislador constituinte brasileiro definiu o país como um sistema misto entre a representação e a participação.
Sim e concordo plenamente com isto. No entanto o principal problema é que a participação hoje seria somente influenciada por grupos sectários da esquerda mais retrógrada e, em menor escala, por grupelhos porta-vozes do conservadorismo religioso. A direita mais liberal simplesmente não está organizada, seja porque os interesses são difusos ou porquê não há cultura e tradição laico-democrática no país com influência da escola política liberal.
Se é verdade que as formas de representação foram muito mais fortemente institucionalizadas entre 1988 e hoje, isso não significa que temos no Brasil um sistema representativo puro, tal como ele existe em um país como a França.
No que é que, exatamente, a França tem de "representatividade pura"?
Pelo contrário, a verdade é que o espírito da Constituição fica muito melhor representado a partir do decreto 8243, que institucionaliza uma nova forma de articulação entre representação e participação de acordo com a qual a sociedade civil pode sim participar na elaboração e gestão das políticas públicas.
Ahhhh... Finalmente chegamos na "divina e toda-poderosa sociedade civil".
Mas, ainda mais importante do que restaurar a “verdade constitucional” é se perguntar qual sentido faz instituir um sistema de participação?
Faz todo o sentido na lógica de poder do atual partido governista. Ao longo da história contemporânea, por diversas razões, a esquerda foi a única a articular um pensamento e uma estratégia de poder de forma mais coesa, sendo que nos países ocidentais centrais e periféricos ele passava pelo controle de sindicatos (oposição à classe proprietária), que não por acaso são um dos principais membros da "sociedade civil".
A resposta a esta pergunta é simples e singela. A temporalidade da representação está em crise em todos os países do mundo. Por temporalidade, deve se entender a ideia de que a eleição legitima a política dos governos durante um período extenso de tempo, em geral de quatro anos.
Se for este o motivo de crise, então a democracia ocidental sempre esteve em crise, ou seja, é um equívoco de análise do autor. Na realidade o que hoje há de diferença significativa em relação ao passado é uma capacidade muito maior de obter informações por parte da população considerando um mesmo intervalo de tempo.
Hoje vemos, no mundo inteiro, pensando em Obama nos Estados Unidos e Hollande na França, uma enorme mudança na maneira como a opinião pública vê os governos.
Exatamente. Opinião pública é a verdadeira expressão do povo (o que não significa que esteja correta) e não a "sociedade civil organizada", que são por definição, grupos que representam interesses específicos.
Temos um novo fenômeno que o filósofo francês Pierre Rosavallon classifica da seguinte maneira: a legitimidade das eleições não é capaz por si só de dar legitimidade contínua aos governos.
Concordo. Basta constatar o que o atual partido governista fez ao longo dos tês mandatos.
Duas instituições estão fortemente em crise, os partidos e a ideia de governo de maioria.
Sobre o primeiro eu concordo. Mas sobre o segundo é preciso muito cuidado, porque o governo da maioria é a base da democracia.
É sabido que a identificação com os partidos cai em todo o mundo, até mesmo nos países escandinavos onde ela era mais alta. É isso o que justifica a entrada da sociedade civil na política, não qualquer impulso bolivariano, tal como alguns comentaristas pouco informados estão afirmando.
Falsa dicotomia. É perfeitamente possível mudar a legislação eleitoral para melhorar a qualidade dos partidos, minorando a influência de grupos de poder (incluindo os econômicos).
E é ridículo que sob a alegação de que partidos não representam os principais anseios da população, se queira dar poderes para grupos que também não representam os mesmos anseios. E o que é pior, tais grupos, no atual contexto, estão muito mais sujeitos a um controle por uma corrente ideológica do que os partidos.
A sociedade civil trás para a política um sistema de representação de interesses que os partidos não são mais capazes de exercer devido a sua adaptação a um sistema privado de representação de interesses e financiamento com o qual a sociedade não se identifica.
Esta parte foi a mais hilária.
Mesmo que eu concordasse inteiramente com a premissa ("partidos representam interesses privados"), a conclusão do articulista está muito distante da realidade porque uma parte significativa da "sociedade civil" de hoje, serviria exclusivamente para fins privados. É só observar o que fazem sindicatos de funcionários públicos e o MST, por exemplo.
O mais curioso é que ninguém mais do que os órgãos da grande imprensa adotam o exercício de mostrar como o poder da maioria pela via da representação não é capaz de legitimar o governo.
Falsa dicotomia, como eu já citei anteriormente.
Depois eu continuo.