Entrando tardiamente na discussão mas tendo lido a maior parte dos post me sinto um pouco deslocado em relação à maioria dos forista que estão ( em graus variáveis) otimistas com as manifestações.
Não estou otimista , na verdade estou cético embora tenha inicialmente me empolgado com os protestos.
Mas vamos por partes:
- Os protestos são um evento histórico inesperado que tomou de surpresa todos os ativistas políticos de qualquer matiz ou corrente. Da TFP à UNE , do PSOL ao DEM ninguém poderia prever que (mais) uma manifestação contra aumento de passagens de ônibus se transformaria em uma revolta popular que se espalharia de forma epidêmica por todo país. O própio MPL foi ultrapassado pelo movimento que iniciou e do qual agora se afasta.
Neste sentido a comparação com a Primavera Árabe não é exagerada pois durante décadas governos corruptos e autoritários dominaram a região sem que o povo se organizasse , era consenso entre analista políticos que a pejorativamente denominada "rua árabe" nunca se levantaria contra o poder estabelecido. Da mesma forma qualquer um aqui aqui conhece as inúmeras frases depreciando a apatia do povo brasileiro para com governos corruptos , para com condições de vida inaceitáveis , etc...
A causa profunda da revolta em curso pode ser encontrada no desgaste progressivo da estratégia petista de conjugar o apoio de setores financeiros e industriais obtidos através da privatização do Estado à cooptação das camadas mais pobres através do uso de estratégias de transferência de renda de forma eleitoreira e paternalista , na cooptação de entidades sindicais e populares com o loteamento de cargos públicos para seus integrantes associado `a velha distribuição de postos governamentais à "base aliada".
Esta estratégia funcionou enquanto o crescimento econômico permitia que a precariedade dos serviços públicos pudesse ser minorada pelo aumento do consumo - a novela das 9 é vista na TV nova , após o jantar feito no fogão novo , da casa sem reboco da rua de terra com vala negra. Mas a estratégia lulo-petista é em última análise contraditória já que a inclusão social que "nunca antes neste país" se propagandeia exigiria não a redução mas o aumento dos gastos públicos , voltados para a ampliação e melhoria das condições básicas de cidadania ( saúde , educação , segurança) associado a uma ampliação do mercado interno com políticas de transferência de renda associadas a políticas econômicas de apoio e subsidio á pequena e microempresa. Mas o aliado que financia e que cobra o retorno do seu investimento na elite lulo-petista não é o pequeno e médio empresário , não é o trabalhador rural ou urbano mas o grande empresariado do agronegócio , as grandes empreiteiras , os grandes investidores do mercado financeiro e as políticas públicas deverão dar retorno para os que mais sustentam o governo na prática e não na propaganda.
Após mais de 10 anos de lulo-petismo o crescimento encontra-se ancorado no mercado externo e não no interno , no superavit primário com emissão enorme de titulos da dívida pública alimentados por um sistema tributário fortemente regressivo beneficiando os seus detentores e na consequente redução dos investimentos públicos em relação à demanda de serviços. Com a mudança do cenário mundial iniciando-se a recessão global a fragilidade estrutural da economia se manisfesta pela redução do crescimento , pelo retorno da inflação mas sem que nenhuma mudança fundamental na condução da economia.Dentro das políticas implementadas para navegar nos mares da crise ( o PAC) a lógica econômica e os compromissos do lulo-petismo então criam um "keynesianismo de espetáculo": o estímulo econômico aos mesmos virá pelos gastos públicos com a Copa e a Olimpíada , pelo comprometimento de recursos públicos com um evento privado cujo efeito positivo a médio e longo prazo será incerto , para dizer o mínimo.
Neste contexto o aumento das tarifas de ônibus logo após a desoneração fiscal da empresas (tradicionais financiadoras de campanhas municipais) vira o estopim da primeira revolta popular da história recente do país.
-Eu gostaria muito de poder dizer que estamos vendo uma revolução neste país mas , infelizmente , não é o caso. Independente o impacto que já tem sobre o contexto político interno do país o que temos é uma revolta popular e esta diferença faz toda a diferença.
A partir das ações do MPL a insatisfação latente da população ( predominantemente mas não exclusivamente jovem e de classe média) sai para as ruas e amplia o leque de protesto para abranger a corrupção , os gastos com a Copa, com a ausência de representatividade do Parlamento , jogando por terra a idéia de um apoio popular ao governo e suas políticas. Não são as elites e o PIG mas os filhos do lulo-petismo que vão para as ruas.
Se o movimento é realmente espontâneo não há lideranças estabelecidas e então os parâmetros pelos quais a elite governamental se baseia para manejar as crises entra em crise , o pronunciamento de Dilma hoje na televisão mostra isto claramente: fala que irá dialogar com as lideranças do movimento ( quem se reivindicou liderança?) , com as entidades estudantis ( que simplesmente se desmaterializaram desde o início da revolta ) , com os sindicatos ( idem)...
Se a espontaneidade é bela , por outro lado , ela é a grande fraqueza do movimento , que o fará se esvaziar e que faz com que seja uma revolta e não uma revolução.
Porque a revolta espontânea consegue articular o que não quer mas não definir com clareza o que quer e como quer.. A agenda negativa das ruas é o ponto de partida para mudanças mas é insuficiente para promove-las porque mudanças estruturais exigem uma política coerente para alcança-las e esta não é elaborada por individuos dispersos mas por grupos organizados. Uma coisa é levantar uma placa escrito "Fora Renan" ou rasgar uma bandeira do PT ou PSTU outra é elaborar uma alternativa ao atual sistema político-partidário. E por mais que as pessoas estejam indignadas ou motivadas o movimento não é um fim , mas apenas um meio , e em breve , sem uma agenda , vai se esgotar seja pelo cansaço da ineficácia.
-Isto não quer dizer que a revolta não tenha causado mudanças. Ela é um terremoto em uma estrutura de poder que se considerava estabelecida e cujas crises eram internas e administradas pelas regras consensuais dos seus integrantes. Governo e oposição não tem interesse em mudar as regras de um jogo em que ambos se beneficiam e que conhecem mas agora este tabuleiro foi estremecido. Haverá mudanças mas quem administrará a mudança será quem tenha o que propor além de slogans. Como não há vácuo se não surgir do movimento uma liderança ( não falo de indivíduo mas de grupo) que aglutine as energias da revolta está terá suas reivindicações cooptadas por um dos atores já estabelecido. Até mesmo o governo.
-Enquanto isto a heterogeneidade dos integrantes da revolta se torna cada vez mais manifesta. A passeata de ontem no Rio virou batalha campal com depredação de semáforos e pontos de ônibus. Hoje ao mesmo tempo que ocorria uma manifestação na Barra uma galera da Cidade de Deus e da Gardênia Azul tomou a Airton Senna depredando lojas , meu bairro teve as lojas fechadas desde as 14 h por temor de saques.
Há quem lute por cidadania , quem deprede prédios público porque não reconhece aquilo como também seu , quem queira roubar...
Gostaria de estar menos cético , estar mais animado e confiante. Mas vi a luta pela Anistia , participei da campanha das Diretas , me mobilizei por uma Constituição , lutei para eleger um governo do PT. Tudo foi conseguido mas nada foi como desejado.
As coisas estão mudando mas o resultado final continuara sendo determinado por quem atua politicamente e não pelas manifestações de rua