O QUE FOI A UDN, O PARTIDO CONSERVADOR QUE PODE SER REVIVIDO E ABRIGAR O CLÃ BOLSONAROEm vias de criação e em negociação com filhos do presidente, a Nova UDN se baseia no legado da legenda antigetulista e "liberal na economia, conservadora nos costumes"
Dimitrius Dantas
19/02/2019 - 07:00 / Atualizado em 21/02/2019 – 14:53
Liberais na economia, conservadores nos costumes, fãs dos militares e dos americanos e odiadores do comunismo. Poderíamos estar falando do bolsonarismo, mas a descrição também serve à União Democrática Nacional, um dos principais partidos políticos no turbulento período entre as ditaduras de Getulio Vargas (1937-1945) e militar (1964-1985). Mais de 50 anos após sua extinção, a sigla pode voltar ao protagonismo na política brasileira com as especulações de que pode receber, entre outros, os membros do clã Bolsonaro. Para uma das principais especialistas na história do partido, entretanto, o bolsonarismo não é o herdeiro direto da UDN, mas apenas um de seus vários filhos.
“Se a UDN pode ser considerada a inspiração para aspectos do bolsonarismo? Sem a menor dúvida”, afirmou a professora aposentada da Universidade de São Paulo, Maria Victoria Benevides, que completou: “Para mim, o bolsonarismo é o herdeiro do udenismo mais radical. É um herdeiro daqueles que vieram a aderir ao golpe em 1964, de Carlos Lacerda [ex-governador do Rio de Janeiro], diferentemente do grupo do Afonso Arinos [ex-deputado, senador e chanceler]”.
Além disso, ao contrário do que afirmam seus novos criadores, a UDN não foi, necessariamente, o partido da direita. Pelo contrário: segundo a pesquisadora, a legenda nunca se assumiu publicamente dessa forma.
O senador Afonso Arinos de Melo Franco, em 1959 Foto: Arquivo O Globo / Agência O GloboO senador Afonso Arinos de Melo Franco, em 1959 Foto: Arquivo O Globo / Agência O Globo
A sigla surgiu, inicialmente, como uma aglutinação das forças que lutaram pela queda da ditadura de Getulio Vargas em 1945. Incluía liberais, mas também socialistas — as esquerdas democráticas, como eram chamadas à época. Durante os 20 anos que seguiram, a UDN disputou as eleições com progressista PTB, alinhado ao getulismo, e o PSD, mais ligado às oligarquias rurais. Para seus críticos, era o partido dos cartolas, do golpe, das vivandeiras de quartéis. Para os udenistas, era o partido do antigetulismo, dos moralistas, da classe média e dos liberais. Segundo Maria Benevides, o partido foi tudo isso.
“Eu acho que a UDN foi extremamente ambígua porque ela apoiou certas pautas progressistas, mas seu antigetulismo era tão radical, tão radical, que a impedia de avançar mais. Ela era liberal na economia, mas politicamente ela não era liberal. Tinha um nível intelectual num sentido mais amplo, que não vejo no PSL. Seria impossível um chanceler como Afonso Arinos de Melo Franco se comparar com o chanceler de Bolsonaro, por exempo. A UDN foi conservadora, com traços militaristas e direitistas, mas ela não se afirmava dessa forma. Ela não se afirmava de direita. Se dizia o partido da eterna vigilância e moralista, sempre vendo a corrupção dos outros”, diz.
No livro A UDN e o udenismo: ambiguidades do liberalismo brasileiro, Benevides conta a história de um partido que, concentrado na luta contra a ditadura varguista, foi tragicamente extinto ao apoiar o surgimento de outro regime autoritário: “O partido que nasceu da luta contra uma ditadura cresceu apesar de sofridas derrotas — sempre em nome dos ideais liberais de sua inspiração primeira —, para finalmente, quase 20 anos depois, surgir vitorioso num esquema de poder que instalaria um regime militar de arbítrio, repressivo e autoritário”, escreveu.
Para ela, o presidente Jair Bolsonaro, à época da fundação do partido, teria poucas chances de triunfar. Nas Forças Armadas, a UDN sempre foi mais alinhada a uma ala menos nacionalista, lançando por duas vezes nomes consagrados dentro da corporação, como Juarez Távora e o brigadeiro Eduardo Gomes.
“Eram homens com uma história de valentia, de coragem. Inicialmente, economicamente, a UDN era muito mais Paulo Guedes que Jair Bolsonaro”, disse a socióloga.
O partido era, por exemplo, favorável à remessa de lucros de empresas para o exterior, um dos temas mais controversos no debate político da época. Socialistas e petebistas queriam que as empresas fossem obrigadas a manter seus ganhos no país. Os udenistas, alinhados aos Estados Unidos, tinham uma visão diferente. Uma de suas principais lideranças, o deputado Aliomar Baleeiro, chegou a dizer que não era a favor de uma política de portas abertas às empresas estrangeiras, mas de portas escancaradas.
Radicalização antigetulista
As sucessivas derrotas, primeiro para Vargas, em 1950, e depois para Juscelino, em 1956, levaram a uma gradual radicalização do partido, que, em 1964, estava entre os primeiros apoiadores do golpe militar. Para Benevides, esses traços ideológicos são as principais semelhanças entre o atual bolsonarismo e a antiga UDN. O baluarte dessa ala era o jornalista Carlos Lacerda, alçado à notoriedade pelas críticas ferozes que fazia à corrupção na era Vargas. Sobre o retorno de Getulio ao poder, em 1950, chegou a dizer: “O senhor Getulio Vargas não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”.
Carlos Lacerda, em 1957 Foto: Acervo o GloboCarlos Lacerda, em 1957 Foto: Acervo o Globo
“O antipetismo repete o antigetulismo em sua força. No fundo, é a ambiguidade entre liberalismo e conservadorismo que é uma constante na história da elite brasileira ”, disse Benevides. Nesse momento surge a proximidade cada vez maior com as alas militares favoráveis à deposição de João Goulart, por exemplo. “Há uma frase de um udenista famoso, José Bonifácio, de Minas Gerais: 'Nunca tiramos os pés do quartel. Atravessamos toda a luta com os pés no quartel, almoçando e jantando com generais, almirantes e brigadeiros. Esses oposicionistas bobocas de hoje, a primeira coisa que fazem é xingar os militares. Não conhecem a realidade brasileira'.”
Na questão dos costumes, assim como o bolsonarismo, a UDN defendia uma moral alinhada com a cristã, particularmente a católica. Contudo, segundo a professora, esse tipo de questão não era uma discussão política na época. A situação de LGBTs não estavam na pauta do dia. Pelo contrário: até mesmo Juscelino Kubitschek, o “presidente bossa-nova”, tinha restrições em relação ao divórcio. Segundo a professora, o JK não aceitava ministros desquitados em seu gabinete.
“Esse conservadorismo nos costumes era também uma coisa religiosa. Os católicos da UDN não tinham nenhuma condescendência com os espíritas, com as religiões afro e menos ainda com os evangélicos. Ser evangélico, na época, para os católicas era uma heresia tremenda”, contou Benevides.
Para a professora, entretanto, é impossível atribuir ao partido a defesa “da moral e dos bons costumes”, necessariamente. “Todos eram conservadores nos costumes. Essa discussão que temos sobre costumes veio depois, a partir de 1968.”
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