A outra categoria é o que se chama de "problema difícil" da consciência. Que já deve ter sido descrito algumas vezes ao longo do tópico, mas enfim. É algo que não se sabe bem o que é. Não é algo que evidentemente emerge dos processos neuronais que ocorrem no nosso cérebro, para um observador externo, e ainda assim, isso ocorre. Só sabemos da existência (aqueles de nós que não pensam que seja uma ilusão) por experienciarmos isso pessoalmente, subjetivamente.
Essa questão da existência dos qualias através do acesso fenomênico subjetivo é criticado por Denett por ser contra a metodologia científica. Esta é a equiparação também com o ceticismo científico, que o classifica como evidência anedótica. Ninguém faz ciência sozinho.
Eu não engulo essa.
Se não podemos falar de experiência subjetiva por ser "evidência anedótica", então tudo é evidência anedotica, pois não apreendemos a realidade diretamente, mas apenas através de nossa experiência subjetiva. Quando você lê um resultado num instrumento, você não pega um atalho que pula o problema da experiência subjetiva e passa direto a uma espécie de conhecimento puro e pleno. Porque a sua leitura do instrumento é uma experiência subjetiva, a sua preparação do instrumento também se deu com base nela, bem como de todas as variáveis. Talvez até dê para se fazer analogia com aquela metáfora das pessoas na caverna que só enxergam sombras do que se passa do lado de fora.
Na realidade, aceitamos nossa experiência subjetiva, e mesmo a "evidência anedótica" nesses casos é levada em consideração, com eventuais confirmações e repetições a partir de outros casos parecidos.
Se não se pudesse levar em consideração a experiência subjetiva como evidência, praticamente todos esses livros do Sacks seriam lixo. E mesmo exames no oftalmologista teriam que ser feitos talvez com toda uma instrumentação que analisa apenas o olho do paciente, sem nunca perguntar o que ele está vendo. E claro, mesmo assim, sempre sem questionar a experiência subjetiva daquele que opera os instrumentos. É irreal.
E, conforme li e postei, mesmo esses que se colocam como eliminacionistas de qualia, não são necessariamente o que se poderia imaginar, não teorizam que somos zumbis filosóficos "experimentando subjetivamente a ilusão de experienciar subjetivamente" os sentidos e etc. São eliminacionistas quanto a definições mais estritas de qualia, ou questionam algumas dessas intuições ou conclusões a partir de experimentos de pensamento (por exemplo, no caso de "Mary" e o seu mundo cinza; eu não acho que o fisicalismo seja falsificado se ela eventualmente experiencia cores "mesmo", algo que nunca tinha experienciado, apesar de saber tudo sobre cores e visão -- provavelmente outros pensam o mesmo, até porque há defensores de qualia como um fenômeno físico).
Experimentos mentais são sempre expostos de forma objetiva pela linguagem, onde passam a ser objeto de críticas de terceiros. É o que fazemos constantemente aqui, é o racionalismo crítico.
A proposta é a heterofenomenologia, a análise da consciência além da perspectiva fenomenológica, a inteligência intrapessoal, como é conhecida na psicologia. A crítica é que a perspectiva de primeira pessoa desconsidera os possíveis erros e causações que ela não tem acesso. Na psicologia popular isso é conhecido como inconsciente, mas podemos definir como falta de auto-consciência sobre o funcionamento da própria estrutura coginitiva.
Heterofenomenologia é mais ou menos o que Sacks "faz" ou "assume". E me parece quase uma espécie de termo criado para definir uma alternativa a espantalho inexistente. Não é porque o cara diz que não é cego, jura sobre o túmulo da mãe que não é, e no entanto, outras evidências indicam que seja, que se assume que ele pode ver por alguma forma de percepção extra sensorial e em algum momento seu comportamento não condiz com a sua visão por um motivo qualquer, ou qualquer outra elucubração possível que tome esses depoimentos como 100% verídicos e não tendem entendê-los em algum contexto maior. É natural o ceticismo quanto ao relatado por percepção subjetiva, mas não quer dizer que ela seja algo com o qual não se possa contar, pois no fim das contas o estudo desses relatos e do que há além dos relatos também depende de percepção subjetiva de uma segunda pessoa ou terceiros.
O fato de você insistir, no deus da lacunas, na linguagem cética, é evidenciado pela sua linguagem, a sua estrutura cognitiva a respeito do tema é exposta quando você utiliza a força do pronome do plural ou indeterminado para definir o tipo de suposto conhecimento que você defende.
Não tem nada de análogo a "deus das lacunas".
Seria se, para explicar a consciência, propusesse, para preencher a lacuna, "deus" ou alguma hipótese cheia de coisas que não derivam do problema nem são necessárias para resolver o problema. A diferença crucial, se você não percebeu, é que eu não estou propondo virtualmente "nenhuma" hipótese, no máximo sugerindo a noção de que seria alguma propriedade física pouco conhecida. É mais uma "definição" do elemento a ser explicado do que uma proposta de explicação propriamente dita. E além disso, diferentemente de propor um deus das lacunas, não é algo para o qual se diga "bem, então, é isso, está resolvido, precisamos da energia mágica XYZ para dar conta do fenômeno, logo ela existe, acabou o problema, apenas não vamos nos perguntar sobre quaisquer problemas levantados em se supor que há a energia mágica XYZ, não há necessidade". Ainda se está na estaca zero, não se deu virtualmente nenhum passo para a compreensão da coisa.
E mesmo na eventual "conclusão" (que não estou defendendo) de que esse fenômeno nos mostraria que o fisicalismo é falso, ainda não é muito diferente, se nos atermos a isso e não acharmos que dá para enfiar um pacote pronto de idéias religiosas ou new-age arbitrariamente e achar que está tudo resolvido. Ainda se está na estaca zero, com o agravante de que se teria algo talvez mais problemático de se estudar do que se supormos ser algo físico de alguma forma.
Se bem que penso ser mais uma diferença de rótulo do que de categoria. Pessoalmente acho que não faz sentido em dizer que qualquer coisa que exista possa ser "não física", praticamente por definição. Apenas com ressalvas mais pragmáticas do que referentes a algo sobre a natureza da realidade.
Claro que a nossa dissonância cognitiva sobre a temática é forte, ao ponto de eu ser comparado com uma ignorância artificial
Não é tanto sobre a temática, mas os desvios do tema, quando não parece passar por cima sem perceber o que realmente é. Memes, capital, e até evolução biológica não são temas que tem qualquer conexão muito direta com o problema.
E esse apelo a visão para configurar a sua proposta é semelhante a fascinação dos criacionista com o olho humano para negar a sua emergência evolutiva.
Apenas porque ambos usam os olhos, em nada mais é análogo, mas esse parece ser o seu recurso favorito para tentar encerrar a questão, só dar por decreto que esse é o status científico da questão, quando não é, quando nem sequer há um.
Criacionistas dizem, "oh, o olho, um aparelho tão complexo, como pode ter surgido por acaso ou mesmo seleção natural, tem que haver uma inteligência criadora, Deus! Aleluia!". Eu não estou dizendo nada que se assemelha a isso a não ser em de vez em quando mencionar olhos. A estrutura do olho e como ela confere aos organismos a informação visual não é algo misterioso, a evolução explica. O funcionamento da ótica em si também, nada demais, e até mesmo a parte do processamento da visão ainda é o que se chamaria de "problema fácil", ainda que haja muito por se descobrir -- mas para todos os efeitos, pode-se quase que dar a questão como "resolvida" por simplificação, já que não é esse o problema.
O problema, pela enésima vez, é que quando esse aparato ótico fornece a informação visual ao organismo, ao menos no caso dos humanos (sem um certo tipo de lesão cerebral), isso é acompanhado da experiência subjetiva. Uma faceta do processo que não é evidente ao apenas compreender o processo "externamente". Diferentemente de como o olho evoluiu, isso não é um problema solucionado pela ciência. E diferentemente dos criacionistas, eu não estou dizendo nada como, "oh, foi Deus/mágica então, louvemos a Deus/entremos em contato com a dimensão mística para além das portas da consciência blablawooblablawoo". Estou apenas admitindo o problema e nossa atual indisponibilidade de meios para resolvê-lo.
Nada a ver com criacionismo.
Aliás, a comparação talvez pudesse ser feita de forma mais defensável do outro lado. Negar o fenômeno é como negar a evolução, e defender um conhecimento do que ocorre "na verdade", apesar da impossibilidade de se por na mesa e provar qualquer coisa, é como defender a "explicação" criacionista. "Isso de evolução/qualia não existe, é só uma bobagem acreditada pelos ateus comunistas comedores de criancinha/místicos, sendo que tudo o que é levantado sobre o assunto pode facilmente explicado como obra do diabo, o rei da mentira/ilusão provocada pela linguagem".
A visão é comumente usada por ser simplesmente o leque de qualia que parece mais fácil para compreender o problema. Outros sentidos ou mesmo outros estados mentais poderiam ser usados, mas é mais provável de resultar em alguma confusão, e acho que normalmente ficam consideravelmente implícitos assim que compreende o problema.
A questão não é negar o qualia nem o epifenômenalismo, mas apenas dizer que estes deuses sem evidência ou provas científicas, não superam as alternativas objetivas e científicas da análise da metodologia científica. E vale lembrar que a psicologia já utiliza isto há muito tempo. O desenvolvimento teóricos das inteligências múltiplas, como a intrapessoal e a interpessoal, vem bem a calhar para superar essa condição de suposta inacessibilidade do subjetivo. Ainda hoje os grandes gênios são fontes de pesquisa para modelar a estrutura cognitiva do ser humano e mesmo estes modelos vão sendo aperfeiçoados com os avanços científicos.
Ninguém está defendendo deuses nem que se precise de qualquer alternativa a uma metodologia científica. O problema é apenas que esse é um problema que ainda não parece fácil de ser abordado de qualquer maneira acessível. Só isso.