e) Boa parte da esquerda brasileira (eu arrisco dizer a imensa maioria) procurava obter o poder pela via revolucionária pois desprezavam a democracia representativa, vista como um "modelo burguês". Então afirmar que eles eram "amantes da democracia" é uma insensatez. E durante a ditadura eles buscaram a redemocratização pela via burguesa porque não lhes restou outra alternativa.
Para afirmar isso então, temos que analisar o período anterior ao golpe. Antes do golpe havia tentativas de uma revolução totalitária de fato, ou a esquerda queria uma revolução socialista através das urnas? Ou ambos, e qual exatamente esse perfil? Precisamos de fontes históricas. O que é fato é que a luta armada e de guerrilha começou exatamente depois do golpe, e a luta que se configurava era contra o regime primeiramente. O que havia na época, segundo eu sei, é que Jango começava a se articular com sindicatos e movimentos populares. Sob a égide da doutrina anticomunista esse movimento era tido, equivocadamente, como uma pré-revolução comunista, ou para bom entendedor, uma boa desculpa para um golpe e para o cerceamento da liberdade de expressão.
Ademais, continuo achando que a tentativa de chamar a esquerda de antidemocrática é pura forçação de barra, e uma tentativa ridícula de relativizar a posição dos militares, da direita e da ditadura em si. Foi a esquerda, quem lutou pela redemocratização no Brasil, não há indícios históricos que a esquerda de um modo geral defendeu ou militou abertamente por um regime totalitário no pós-golpe, a palavra de ordem era democracia, é disso que eu sei.
Ponderando. Sim, havia o sonho da revolução socialista, e dentro desta é provável que existisse um conceito de Estado parecido com todos os outros socialistas, mas o fato é que nunca isso, mesmo antes do golpe, esteve perto de acontecer. Repito, o crédito da luta contra a ditadura, e a favor da democracia é da esquerda.
Primeiro:
A esquerda pré-64 era constituda basicamente por dois blocos: o PCB no campo marxista ( com seus militantes em sindicatos , associações , ligas camponesas, etc..) e pelo PTB no campo nacionalista-populista ( também com inserção em organizações populares). Os demais grupos classificáveis como de esquerda (como o PCdo B e o PSB) tinham inserção muito pequena em relação aos dois anteriores.
O PCB , assim como os demais PC's latinoamericanos , partilhavam uma estratégia comum baseada em uma análise da realidade social calcada na interpretação soviética do materialismo histórico (codificada por Stalin). Nesta interpretação
todas as formações sociais necessariamente devem passar pela evolução feudalismo-capitalismo-socialismo e a luta pela revolução socialista só se torna atual quando o capitalismo atingir um estágio suficiente de desenvolvimento para suas contradições internas permitirem criar o socialismo. As sociedades latino-americanas , com sua estrutura sócio-econômica ancorada na agricultura e estruturas de poder patriarcais , são consideradas em transição para o capitalismo e não maduras para a revolução socialista. Neste caso a tarefa estratégica dos comunista era lutar para que o capitalismo se consolidasse e tivesse uma sólida inserção do PC na classe operária ; usando a expressão de Lenin (para variar transformada em regra intemporal e sem limitações geográficas) o objetivo era ser " a ala esquerda da revolução democrático-burguesa". Esta receita de bolo era aplicada em toda AL , variando apenas quem era considerada "burguesia progressista " (i.e. comprometida com um desenvovimento capitalista nacional independente) e quem era "burguesia reacionária" (i.e. ligada aos interesses imperialistas e sendo seus representantes nacionais); no Brasil a "burguesia progressista" era a que estava agrupada em torno do PTB. Esta estratégia ficou conhecida como
etapismo ou
teoria da revolução por etapas e nunca foi abandonada pelo PCB.
Portanto uma revolução socialista imediata estava fora dos planos do PCB e sua luta era para garantir que o PTB liderado por Jango assumisse a liderança efetiva dos "setores progressistas e populares" e implementasse a reforma agrária ( ampliando a posse de terra e enfraquecendo o latifúndio) e estimulasse o capital nacional em detrimento do internacional ( com a lei sobre remessa de lucros para o exterior). Se necessário apoiaria a insturação de um regime autoritário que garantisse os interesses dos setores "progressistas e populares" , o que parecia ser a inclinação de Jango no final.
Segundo:
Quando você fala de esquerda , q qual está se referindo?
O golpe de 64 rachou a esquerda brasileira de cima a baixo. Da noite para o dia , literalmente , toda a estratégia política do PCB desde 1945 virou pó. Subitamente os setores reacionários que , segundo afirmava o idiota do Luis Carlos Prestes , seriam esmagados se tentassem um golpe não só o fizeram como não enfrentaram ( para sua própia surpresa) nenhuma resistência apreciável.
O reagrupamento de boa parte da esquerda se deu na tentativa tardia de se contrapor ao golpe e se caracterizou por um giro estratégico de 180°: se antes a revolução não estava na ordem do dia agora ela era para já. Para esta mudança , catalizada pela derrota de 64 , foram determinantes duas teorizações distintas mas que se conjugaram no fim da década de 60:
- a teoria do foco revolucionário ou "foquismo" apresentada por Che Guevara no livro "A Guerra de Guerrilha" (1960) como fruto da teorização das razões da vitória da Revolução Cubana , posteriormente complementada pelo texto "Revolução na revolução?" de Régis debray (1967). Vou citar a avaliação de Jacob Gorender sobre esta teoria:
O ponto de partida da teoria do foco consistia na afirmação da existência de condições objetivas amadurecidas para o triunfo revolucionário em todos os países latino-americanos.Guevara dizia que a revolução latino-americana seria continental , impondo-se por cima de diferenças nacionais secundárias , e diretamente socialista. A simpatia inicial das forças burguesas , como se deu em Cuba , constítuia excepcionalidade:certa leniência do imperialismo norte-americano , que se deixou enganar acerca das intenções e da integridade dos revolucionários de Sierra Maestra.
Se já existiam as condições objetivas, também reram necessárias as condições subjetivas , conforme ensina o marxismo. ou seja , a vontade de fazer a revolução por parte das forças sociais por ela beneficiadas. Aqui entrava a grande descoberta: as condições subjetivas podiam ser criadas ou rapidamente completadas pela ação do foco guerrilheiro. Este funcionava como o pequeno motor acionador acionador do grande motor - as massas.
Em A Guerra de Guerrilhas , Guevara ainda faz a ressalva sobre a inviabilidade do foquismo em países sobre regimes constitucionais , nos quais se realizem eleições , mesmo fraudulentas. escritos posteriores do própio Che anularam a ressalva , salientaram o beco sem saída das formas legais de luta de massas e converteram a guerrilha rural em forma absoluta da ação revolucionária. [...] O foquismo trouxe outra novidade que o singularizou: a idéia da primazia do fator militar sobre o fator político , da prioridade do foco guerrilheiro sobre o partido.Os cubanos dirigiam uma crítica ácida , mas verdadeira , ao burocratismo é à corrupçãoque assolavam certos partidos comunistas. Ao invés de esperar por eles , o foco guerrilheiro assumia a responsabilidade de iniciar a luta. Todo o processo revolucionário se subordinaria `dinâmica germinativa da guerrilha rural , desde a luta de massas nas cidades `formação do novo partido revolucionário.
[...] O foquismo se origina num dos mais interessantes mitos do movimento revolucionário mundial. O mito de que a Revolução Cubana chegou à vitória pelo poder mágico de doze ou dezessete sobreviventes da expedição do Granma , iniciadores da luta na Sierra Maestra a partir do nada , a partir do zero.[...] A luta guerrilheira cubana ficaria indefinidamente confinada ou seria esmagada se já não encontrasse a campanha nacional à qual a guerrilha se associou e da qual terminou ganhando a direção. Esta campanha nacional contra batista , de que participavam o Movimento 26 de Julho chefiado pelo própio Fidel e por Frank país , o Diretório Revolucionário , o Partido Comunista , sindicatos operários e mesmo correntes políticas burguesas e que reduziu consideravelmente a eficiência do exército de Batista e forneceu aos guerrilheiros elementos materiais e morais para suas façanhas.[...]Por conseguinte , nem mesmo o caso de Cuba se ajusta à teoria do foco.
Jacob Gorender , Combate nas Trevas - a esquerda brasileira das ilusões perdidas à luta armada
- a teoria do agravamento da contradições do capitalismo: segundo esta avaliação o golpe era a manifestação e prova de que não só os caminhos para a mudança pacífica para o socialismo estavam fechadas mas que na verdade as contradições internas do capitalismo brasileiro ( e do capitalismo a nível internacional) estavam se acirrando. O golpe era a prova de que as classes dominantes estavam realmente ameaçadas pelos movimentos populares e só tiveram uma vitória (temporária) pelos erros da direção revolucionária. Assim , era necessário partir para a luta pela derrubada do regime por uma revolução socialista e todo acirramento da repressão era uma prova da fraqueza e da ameaça sentida pelas classes dominantes.
Com tal contexto ideológico não admira que mesmo lideranças tarimbadas ( como Marighela e Mauricio Grabois) tenham aderido á opção armada , que dirá os militantes jovens radicalizados. E ninguem da "pesada" estava pegando em armas para obter pluripartidarismo , liberdade de imprensa e reunião e outras coisas da "democracia burguesa".
Quando começa o movimento pela redemocratização em meados da década de 70 esta esquerda está destruída , com seus militantes distribuídos entre a prisão , o exílio ou a tumba ( muitos poucos mantém-se na clandestinidade com alguma estrutura organizacional , é o caso do PCdoB). A redemocratização é a conjunção entre a "abertura lenta e gradual" articulada por Geisel e Golbery e o ressurgimento de mobilização da sociedade civil (OAB , CNBB , SBPC , sindicatos , estudantes) para o fim da ditadura e o retorno á democracia. O pano de fundo é o desgaste progressivo e a perda da base de apoio na classe média e parte da classe alta em virtude da deterioração da economia ( fim do Milagre Econômico) e a desorganização interna do aparato militar pela autonomia que os orgãos de repressão ( "o porão") adquiriram.
A esquerda marxista que se junta aos outros grupos da sociedade civil para lutar pela redemocratização nas brechas que surgem com o enfraquecimento gradual do regime é constituída principalmente por grupos que não pegaram em armas e que rejeitaram a opção armada: PCB , organizações trotskistas ( sendo a mais antiga a Convergência Socialista , origem do atual PSTU) e grupos marxistas não pró-sovieticos ( como o Movimento de Emancipação do Proletariado). No início da década de 80, após a anistia , é que organizações remanescentes da luta armada como o PC do B , a APML (Ação Popular Marxista Leninista) e o MR-8 se juntam ao movimento de redemocratização.
Assim a redemocratização não foi fruto da esquerda , mas da junção de grupos de esquerda e de grupos liberais/democráticos. E a esquerda que lutou pela redemocratização não foi , em sua maioria , a mesma que pegou em armas.