O sempre excelente
Hélio Schwartsman (maldito sobrenome que eu sempre tenho que dar ctrl+c ctrl+v) falou ontem na coluna dele sobre o tema.
Menos médicos
SÃO PAULO - É preciso muito otimismo ou então estar em campanha eleitoral para deixar de qualificar a primeira fase do Mais Médicos como um fracasso. Segundo o próprio Ministério da Saúde, foram habilitados para atuar no programa 1.618 profissionais, o que corresponde a apenas 10,5% da demanda apresentada pelos municípios. O que fazer para resolver o problema?
Comecemos pelo que não fazer e saudemos a sabedoria do governo por ter recuado da esdrúxula ideia de ressuscitar uma corveia feudal, pela qual todos os formandos em medicina estariam obrigados a trabalhar por dois anos para o SUS. Numa sociedade livre, as pessoas têm o direito de escolher onde vão morar e de aceitar ou rejeitar contratos de trabalho.
Restam, assim, as chamadas soluções de mercado. Elas são, em princípio, duas. Ou elevamos os salários até que o profissional se disponha a atuar nas áreas prioritárias, ou produzimos médicos em quantidades tais que eles aceitem ir pelo valor que as autoridades oferecerem. Nenhuma das duas é boa.
A primeira tem seu limite nos caixas das prefeituras e na Lei de Responsabilidade Fiscal. A segunda, além de demandar tempo, tende a achatar o salário de médicos, desorganizando ainda mais o sistema.
O caminho, creio, é atuar no nível da regulação e repensar os modelos. Se não querem trazer os cubanos, muito bem, podemos autorizar enfermeiros que atuem em regiões onde não há médicos a prescrever e realizar certos procedimentos.
Uma tese defendida pela revista "The Economist", com a qual concordo, é a de que, no futuro, devido ao envelhecimento da população e ao aumento da prevalência das doenças crônicas, vai ser economicamente inviável formar tantos médicos quantos seriam necessários pelos padrões do século 20. Isso exigirá ampliar as responsabilidades de outros profissionais da saúde, reservando o médico para casos de maior complexidade.
É significativo que ao mesmo tempo que estamos discutindo o programa
Mais Médicos tenhamos uma pressão tão grande (em parte já ganha
por eles) da categoria em questão pelo tal
Ato Médico que é exatamente o oposto do que o Hélio propõe. Mas ao contrário dele, eu acho que a melhor solução a longo prazo seja sim a ampliação muito significativa da oferta de vagas nas faculdades de medicina, sobretudo nas públicas.
Acho que o grande medo difuso é uma redução da capacidade intelectual/profissional dos médicos se oferta de vagas nos cursos for ampliada. Acreditamos que os médicos que temos são o supra-sumo da inteligência, da capacidade de raciocínio e do conhecimento e que em nenhuma outra profissão dependemos tanto de um controle severo quanto a isso: da decisão de um médico depende diretamente a vida, um indivíduo não muito inteligente/culto expõe o paciente a risco
de vida e por isso só os que foram comprovadamente geniais durante todo o processo educacional pré-graduação devem ser aceitos na medicina. O resto que vá fazer enfermagem.
É basicamente este o
argumento implícito (nem tanto) da classe para garantir sua grande (ou melhor, pequena) reserva de mercado (diretamente resultante do reduzidíssimo número de vagas universitárias)
E nem é que seja nada absurdo, em linhas gerais até que é
bonitinha a lógica: realmente eu não quero um semi-analfabeto que passou na cagada e de raspão em um vestibular frouxo e que concluiu o curso mal e porcamente tendo que repetir a maior parte das disciplinas e passando de raspão na segunda vez fazendo meu diagnóstico diferencial entre
câncer no estômago e
dispepsia funcional (doenças com sintomas iniciais quase idênticos mas que exigem cuidados diametralmente opostos) caso eu esteja numa situação assim; ou como disse o Parcus, decidindo se vai me prescrever um antibiótico para combater o tipo de bactéria que causa amigdalite ou o que causa gonorréia (se não forem os mesmos, sei lá

). É óbvio que tanto a bagagem de conhecimento acadêmico (inclusive aquele obtido nos ensinos fundamental e médio) quanto a inteligência inata do indivíduo devem ter um bom papel na maior ou menor capacidade de um médico fazer diagnósticos rápidos e precisos ou escolher terapias eficazes. Se é pra escolher eu também prefiro um que tenha passado entre os 100 primeiros no geral da UNB e que tenha tido desempenho exemplar, se formando
cum laude.
Um problema é que ao contrário do que intuitivamente enxergamos, isto não é tão diferente de qualquer outra área, tirando, talvez, as humanas. Um engenheiro ou um geólogo mal formado podem colocar em risco a vida de milhares de pessoas que utilizam determinado estádio, um biomédico mal formado pode zoar com os resultados dos exames fazendo com que o médico que me atenda continue dando diagnósticos furados mesmo fazendo a sua parte toda certinha, farmacêuticos mal formados podem cometer equívocos na formulação de suas pílulas levando a intoxicação ou ineficácia, engenheiros eletrônicos podem produzir celulares que explodem no meu bolso. Na verdade esta intuição que temos de que a profissão do médico especificamente é mais "crítica" eu acho que tem muito a ver com nossa tendência a acreditarmos, por exemplo, que o ônibus sempre demora mais quando estamos atrasados.
Erros médicos podem levar à morte, erros de engenharia podem levar à morte, erros na composição química de medicamentos e alimentos podem levar à
morte. Só que os erros médicos são mais diretamente observados. Se baseado nisso os cursos de Engenharia e Farmácia sofressem as mesmas limitações impostas pelo CFM e se discutíssemos coisas como o Ato Farmaceutico ou o Ato Engenheiro estaríamos numa situação muito complicada no que diz respeito à oferta de serviços que dependam destas profissões também.
Por outro lado (e ainda que eu venha admitir que as comparações são impróprias, que não se
pode comparar proporcionalmente o peso do trabalho de um engenheiro com o de um médico, e
talvez não se possa mesmo, no risco difuso com que estão relacionados) há outro detalhe: as manipulações protecionistas em relação à profissão médica não têm garantido nem de perto o modelo ideal que está implícito no "argumento" mais acima. Se garantissem nós não teríamos a quantidade de médicos que prescrevem tratamentos alternativos como auriculoterapia, que fazem pós em homeopatia, eu não teria ouvido dia desses de uma médica que trabalha lá no posto que "hoje em dia
só morre de câncer quem não luta, quem se entrega à doença" (num contexto em que, durante um bate papo informal, uma auxiliar de enfermagem comparava as diferenças de sobrevida de dois parentes: um morto seis meses após o diagnóstico e outro vivo e curado após ter enfrentado um CA 15 anos antes) e não teríamos tantos médicos diagnosticando virose a qualquer paciente que apareça com dores articulares e febre e hematócritos e plaquetas sem alterações.
Idealizamos que para ser médico o sujeito tenha que ser
gênio e em função disso tomamos uma série de medidas protecionistas e, depois, em função de termos tomados estas medidas, assumimos que esta idealização é verdadeira. Arcamos com os custos de uma política
especial em relação à profissão e não recebemos nem de longe os benefícios prometidos, num ciclo vicioso.
Acredito fortemente que se o número de vagas (especificamente nas universidades
públicas) para as faculdades de medicina duplicassem ou triplicassem até teríamos ganho quanto à competência média dos profissionais (já que haveria disputa na carreira, é um dos aspectos perversos do mercado altamente reservado, faz com que até o médico mais relesmente formado seja muito bem situado no mercado de trabalho: nas demais profissões é comum haver uma peneira ou pelo menos uma estratificação pela qualidade de formação, os piores formados são contratados no máximo para cargos auxiliares, dificilmente passam em concursos...)
Na medicina o cara se forma com CR 4 na Estácio de Sá ou na Gama Filho e passa num concurso para exercer a chefia da UTI pediátrica de um grande hospital público (como único candidato). Acho que se as públicas ampliassem significativamente o número de vagas a carreira ainda continuaria sendo atrativa o suficiente para ter as melhores notas (e, por pressuposto, os melhores alunos) destas universidades e de quebra aumentaria a disputa na profissão, melhorando a qualidade geral do serviço porque pelo menos aquela (enorme) fatia dos profissionais que entraram na carreira apenas pelo pai ter os 3 mil reais de mensalidade ao mês para pagar à
Universidade Pagou Passou do shopping mais próximo e não pelo desempenho espetacular num vestibular disputadíssimo encontrariam concorrência.
No meu palpite os principais resultados (positivos ou negativos) gerais seriam:
I - aumento da disponibilidade de profissionais para atender as classes mais baixas e lugares mais distantes, redução de tempo de espera no plano de saúde, ou seja: o óbvio.
II -
redução dos esquemões no serviço público de saúde com médicos assinando ponto 5 dias em 2, ou 3, ou 4 unidades diferentes e trabalhando efetivamente 1 dia, 1 dia e meio, 2 dias no máximo, em cada. (No serviço público estes esquemões são generalizados, mas na saúde eles são maiores e são puxados pelos médicos. O médico chega na unidade para se apresentar porque acabou de passar num concurso e já bate na mesa e diz que só vai trabalhar 2 dias, aí o enfermeiro vem atrás e bate na mesa também: se ele só trabalha 2 eu só trabalho 3 e daí se forma o ciclo, se o poder dos médicos em autodefinir a própria carga horária diminui o ciclo se enfraquece: tanto é que em outros setores, como a educação, a coisa não funciona assim tão descaralhada).
III - redução da renda média da categoria mas não o suficiente para deixar a profissão pouco atrativa (é a profissão oficialmente mais bem paga e com maior índice de empregabilidade do país, a pauta que dá origem a este tópico revela que mais de 99% da classe rejeita oportunidades de trabalhar sob uma remuneração de 10, 15 mil reais, só disso dá bem pra deduzir que precisa de muita coisa para torná-la pouco atrativa como os órgãos da classe fazem propaganda).
IV - aumento da eficiência geral do serviço pelo surgimento de algum nível, mesmo que incipiente, de concorrência e meritocracia no mercado de trabalho.
P.s. 1 :Quanto ao tema específico do tópico, não acho uma péssima ideia importar médicos como solução imediatista visto que nosso problema imediato parece ser mesmo a falta deles (não a falta de fato, talvez o número de médicos até seja suficiente, mas a forte reserva de mercado acaba criando um cenário de falta aparente ou aparentemente maior).
P.s. 2 : Não, se tem uma profissão que nunca mesmo passou na minha cabeça exercer foi a medicina. A agonia humana é uma coisa com a qual acredito que nunca aprenderia a lidar bem. ,)