As múltiplas encarnações são apregoamentos kardecistas, os espiritualistas britânicos repudiam a ideia de viver várias vidas. Em ambos os casos são “espíritos” que ora ensinam que o destino do homem é ficar de vaivém entre lá e cá, ora notificam que não existe essa de viver um monte de vezes... Curioso, não?
Curioso, sim, mas perfeitamente justificável. A altivez e o orgulho dos espíritas ingleses foi acatado e respeitado ou haveria uma debandada que em nada, naquele momento, contribuiria para a divulgação da DE.
Simplesmente aguardou-se, pois o tempo corrige, inexoravelmente, estas distorções.
Tudo bem, pode ser que seja por aí, mas qual a garantia de que os espíritos ingleses estavam errados e os franceses certos? Por que haveria na espiritualidade tão drástica divisão opinativa, que não poderia existir, já que “eles” estariam diante da realidade real, quer dizer: ou a reencarnação existe ou não...
Não esqueça de que o espiritismo é vertente do espiritualismo...
A esse respeito, posto trecho de discussão que travei com autor espírita há algum tempo.
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ESPÍRITA: Muitas pessoas, querendo depreciar o Espiritismo, dizem que a reencarnação, na qual acreditamos, foi tomada do hinduísmo ou de uma crença popular qualquer. Certamente que apelando para o tal de “paganismo”, como se isso fosse o bastante para derrubar a nossa convicção nessa lei divina. Para que fique bem claro, vejamos o que o próprio Kardec disse a esse respeito:
COMENTÁRIO: É fato que Allan Kardec não “inventou” a hipótese reencarnacionista (nem mesmo o modelo vigente no meio espírita foi obra dele): muito antes, a ideia, sob diversas roupagens, se apregoava em pontos variados do globo. Inclusive, na sociedade francesa, contemporânea a Rivail, concepções das múltiplas existências eram divulgadas. O reencarnacionismo evolutivo, que foi o adotado por Rivail Denizard, gozava apreço em círculos intelectuais na França e em partes da Europa, mesmo antes de Kardec aderir ao espiritualismo.
Dificilmente Allan Kardec desconheceria essas proposições e somos levados a supor que simpatizasse com elas.
KARDEC: A doutrina da reencarnação, isto é, a que consiste em admitir para o homem muitas existências sucessivas, é a única que corresponde à ideia que fazemos da justiça de Deus, com respeito aos homens de formação moral inferior; a única que pode explicar o futuro e firmar as nossas esperanças, pois que nos oferece os meios de resgatarmos os nossos erros por novas provações. A razão no-la indica e os Espíritos a ensinam. (KARDEC, 2006, p. 155). (grifo nosso).
COMENTÁRIO: Consideremos a primeira parte do fecho da reflexão: “A razão no-la indica”. O que Kardec diz-nos é que, dentro da concepção de justiça divina, por ele acatada, o reencarnacionismo seria a proposta que com ela melhor harmonizava. É patente a predileção de Kardec pela reencarnação como projeto salvacionista: somente ao final do discurso, após exaltar as qualidades lógicas da suposição reencarnacionista, noticia que era ensinamento dos espíritos (porém, estrategicamente, não informa que fora ensino de alguns “espíritos”, não de todos).
KARDEC: O dogma da reencarnação, dizem algumas pessoas, não é novo; foi ressuscitado de Pitágoras. Jamais dissemos que a Doutrina Espírita fosse uma invenção moderna. Por constituir uma lei da Natureza, o Espiritismo há de ter existido desde a origem dos tempos e sempre nos esforçamos em provar que se encontram sinais dele na mais remota Antiguidade. Pitágoras, como se sabe, não foi o autor do sistema da metempsicose; ele o colheu dos filósofos indianos e dos egípcios, [Obs.: os egípcios não eram reencarnacionistas, a rotina religiosa egípcia, e seus escritos a respeito do julgamento dos homens após a morte, aponta para a ideia de ressurreição, não de reencarnação.] onde existia desde tempos imemoriais. A ideia da transmigração das raças formava, pois, uma crença vulgar, admitida pelos homens mais eminentes. De que maneira chegou até eles? Por uma revelação, ou por intuição? Não o sabemos. Mas, seja como for, uma ideia não atravessa os séculos e nem é aceita pelas inteligências de escol, se não contiver algo de sério. Assim, a antiguidade dessa doutrina seria mais uma prova a seu favor do que uma objeção.
COMENTÁRIO: “Ser antiga” não dá peso evidenciativo a qualquer idealização. Algumas crenças se mantêm vivas por longo tempo por motivos variados, porém a longevidade não pode ser considerada comprovação. Historicamente, a crença na reencarnação é relativamente recente, embora Kardec tenha erroneamente afirmado que vem “desde a origem dos tempos”. As civilizações mais antigas, como egípcios, mesopotâmios, chineses, não cultivavam conjecturas reencarnacionistas. Em algumas nações, a ideia de múltiplas existências foi incorporada ao pensamento de certos grupos, passando a concorrer com outras postulações, conforme aconteceu na Grécia. Nesta, a hipótese multividas foi valorizada em comunidades esotéricas. Mesmo na Índia, onde as idealizações reencarnacionistas são bem distintas das apregoadas pelo kardecismo, a suposição de muitas existências não constava em escritos religiosos primitivos. Os registros indianos mais antigos não falam de vidas continuadas. Portanto, é incorreta a afirmação de que a reencarnação seja “crença imemorial”.
KARDEC: Todavia, entre a metempsicose dos antigos e a moderna doutrina da reencarnação há, como também se sabe, uma grande diferença: a de os Espíritos rejeitarem de maneira absoluta a transmigração da alma do homem para os animais e vice-versa. (KARDEC, 2006, p. 177). (grifo nosso).
COMENTÁRIO: Podemos replicar que os “espíritos” respondem conforme seus cultuadores desejam. Não esqueçamos que entre os espíritas ingleses, onde a reencarnação é repudiada, a espiritualidade também a renega. A metempsicose foi rejeitada pelos alegados espíritos que assessoravam Kardec porque destoava do projeto reencarnacionista por ele adotado, e os “entes espirituais” fizeram eco ao pensamento do codificador. Provavelmente que se consultada a “espiritualidade” de regiões cultivadoras da metempsicose, utilizando-se de médiuns que nela acreditassem, fosse manifesta empolgada aprovação à transmigração de almas em corpos animais.
KARDEC: Vós estáveis, sem dúvida, dizem também alguns contraditores, imbuídos dessas ideias, e eis porque os Espíritos se aterraram à vossa maneira de ver.
COMENTÁRIO: É mais ou menos como dissemos acima, e esta é uma boa objeção, à qual Kardec respondeu como pode. É fato que os “espíritos” refletem, e frequentemente repetem, o pensamento dos vivos: em verdade, as ditas revelações espirituais não são recados inéditos, provindos de legítima sabedoria transcendental, nada: são ecos de anseios terrenos a respeito do que se supõe seja o mundo além. Vemos que naqueles dias, os críticos haviam percebido esse ponto. Adiante veremos como Kardec se defendeu.
Quanto à metempsicose, esse pensamento ainda é acatado por diversas religiões asiáticas. Se seguirmos a alegação de Kardec, de que a antiguidade de uma crença testifica em seu favor, nesse caso, o crente deveria ficar com a metempsicose, por ser idealização mais vetusta.
Kardec diz ter buscado o consenso dos espíritos e informa que a espiritualidade unanimemente rejeitara a metempsicose. Porém, essa unanimidade aconteceu entre os espíritos que Kardec dizia consultar, pois não sabemos se as almas asiáticas, caso fossem evocadas, também denegariam a reencarnação em corpos de irracionais. Além disso, mesmo a unanimidade espiritual-européia, afirmada por Kardec, não foi absoluta: os “espíritos” ingleses, ao rejeitaram a reencarnação, repudiaram tanto a metempsicose, quanto as múltiplas vidas kardecista.
KARDEC: Aí está um erro que prova, uma vez mais, o perigo dos julgamentos apressados e sem exame. Se essas pessoas tivessem se dado ao trabalho de lerem o que escrevemos sobre o Espiritismo, teriam se poupado apenas de uma objeção feita muito levianamente. Repetiremos, pois, o que dissemos a esse respeito, saber que, quando a doutrina da reencarnação nos foi ensinada pelos Espíritos, ela estava tão longe do nosso pensamento, que tínhamos feito, sobre os antecedentes da alma um sistema diferente, de resto, partilhado por muitas pessoas. [Obs.: que sistema teria sido? Não localizamos o que Kardec pensava antes de aderir ao reencarnacionismo.] A doutrina dos Espíritos, sob esse assunto, portanto, nos surpreendeu; diremos mais, contrariou, porque derrubou as nossas próprias ideias; ela estava longe, como se vê, de ser-lhe o reflexo. Isso não é tudo; não cedemos ao primeiro choque; combatemos, defendemos a nossa opinião, levantamos objeções, e não nos rendemos senão à evidência, [Obs.: qual teria sido a evidência à qual Kardec se rendera?] e quando vimos a insuficiência do nosso sistema para resolver todas as questões que esse assunto levanta. (KARDEC, 2001a, p. 295-296) (grifo nosso).
COMENTÁRIO: Kardec faz sua defesa, ante a acusação de que os recados reencarnacionistas dos espíritos seriam reflexos daquilo em que acreditava, afirmando que, antes de ter conversado com os desencarnados, sua convicção fora contrária às múltiplas vidas. Só que, ao dizer tal coisa, parece entrar em contradição, uma vez que ao início do escrito, explica-nos que dois foram os motivos que o levaram a optar pelo reencarnacionismo: a razão e os espíritos. Ele assevera que seu primeiro contato com o reencarnacionismo veio da espiritualidade. Então, submeteu a proposta ao crivo da razão, o que o fez perceber a logicidade das múltiplas existências e, finalmente, cedeu. Mas, e anteriormente, a razão não lhe dera indicações de que a melhor escolha seria essa? Quais teriam sido as primeiras razões de Kardec e as derradeiras? A desculpa de Kardec de que jamais examinara proposições reencarnacionistas, só o fazendo após ter conversado com espíritos soa-nos de difícil aceitação.
KARDEC: Raciocinamos, como dissemos, abstração feita de todo ensino espírita que, para certas pessoas não é uma autoridade. Se nós, e tantos outros, adotamos a opinião da pluralidade das existências, não foi somente porque ela nos veio dos Espíritos, mas porque nos pareceu a mais lógica, e que só ela resolve as questões até agora insolúveis. Se viesse de um simples mortal e a adotaríamos do mesmo modo, e não hesitaríamos antes em renunciar à nossas próprias ideias; do momento em que um erro é demonstrado, o amor próprio tem mais a perder do que a ganhar obstinando-se numa ideia falsa. Do mesmo modo, teríamos repelido, embora vinda dos Espíritos, se ela nos parecesse contrária à razão, como as repelimos muitas outras, porque sabemos, por experiência, que não é preciso aceitar cegamente tudo o que vem de sua parte, não mais do que vem da parte dos homens. (KARDEC, 2001a, p. 301-302). (grifo nosso).
COMENTÁRIO: Kardec diz algo muito sério: foi ele próprio o filtro que acatou e rejeitou no espiritismo o que achou por bem. Aqui deparamos problema, sério problema. Suponhamos que a reencarnação lhe contrariasse a razão, conforme contrariou a razão dos espíritas ingleses, mas, fosse ensinada pela universalidade dos espíritos por ele consultados. O que faria Kardec? Além disso, o fato de o codificador monopolizar a escolha do que era cabível ao espiritismo não dá a doutrina garantia alguma de que as opções por ele feitas foram as corretas. Melhor se sairia se elegesse colegiado para conjuntamente avaliar os recados mediúnicos.
O que para Rivail soara de lógica cristalina, para os espíritas ingleses parecia coisa insensata. Vejamos o que um autor inglês dizia da “lógica” reencarnacionista.
“Quando a Reencarnação assumir um aspecto mais científico, quando puder oferecer um demonstrável conjunto de fatos que admitam verificação como os do Moderno Espiritismo, merecerá ampla e cuidadosa discussão. Por enquanto, que os arquitetos da especulação se divirtam como quiserem, construindo castelos no ar. A vida é muito curta e há muito que fazer neste mundo atarefado, para que deixemos os vagares e as inclinações a fim de nos ocuparmos em demolir essas estruturas aéreas ou apontar os frágeis alicerces em que se assentam. É muito melhor trabalhar naqueles pontos em que concordamos, do que nos engalfinharmos sôbre aqueles em que parece que divergimos tão desesperadamente. (História do Espiritismo – Arthur Conan Doyle)
KARDEC: Temos, pois, como se vê, muitos motivos para não aceitarmos, levianamente, todas as teorias dadas pelos Espíritos. Quando uma nos surge, nos limitamos ao papel de observador; fazemos abstração de sua origem espírita, sem nos deslumbrarmos pela imponência de nomes pomposos; nós a examinamos como se ela emanasse de um simples mortal, e vemos se é racional, se dá conta de tudo, se resolve todas as dificuldades. Foi assim que procedemos com a doutrina da reencarnação que não adotamos, embora vinda dos Espíritos, senão depois de reconhecer que só ela, mas só ela, podia resolver o que nenhuma filosofia ainda não resolvera, e isso abstração feita das provas materiais que dela são dadas, cada dia, a nós e a muitos outros. Pouco nos importa, pois, os contraditores, fossem eles mesmo Espíritos; desde que ela é lógica, conforme a justiça de Deus; que eles não podem substituí-la por algo mais satisfatório, não nos inquietamos mais com eles do que com aqueles que afirmam que a Terra não gira ao redor do Sol - porque há Espíritos dessa força e que se dão por sábios - ou que pretendem que o homem tenha vindo inteiramente formado de um outro mundo, carregado nas costas de um elefante alado. (KARDEC, 2000, p. 108-109). (grifo nosso).
COMENTÁRIO: Talvez sem perceber, Kardec se complica, pois está a dizer que o critério maior, que o norteou na elaboração da doutrina, foi seu próprio juízo e sua predileção por essa hipótese. De certa forma, o que se declara é o seguinte: “aceitei a proposta reencarnacionista porque ela é lógica, e porque os espíritos a ensinam”. Até aí tudo bem, contudo diante da informação de que espíritos em outras plagas rechaçam tal concepção, Kardec retrucaria: “não importa, a doutrina continua sendo lógica”. Portanto, os reais critérios de escolha foram as particulares predileções do codificador.
Além disso, que garantia têm os espíritas de que o “filtro lógico” utilizado por Kardec foi eficiente em todas as situações? Ele afirmava que, diante de ensino novo promanado dos espíritos, observava, examinava, avaliava. Assim deve ter feito com a suposição de que a totalidade dos corpos celestes seja habitada; com a ideia de a alma sair do corpo durante o sono, e com a reeencarnação. Ora, se Rivail falhou com sua filtragem lógica em pontos tão importantes quanto a evolução reencarnativa, por que não poderia falhar ao eleger essa crença?
KARDEC: O próprio princípio da reencarnação que tinha, no primeiro momento, encontrado mais contraditores, porque não era compreendido, hoje é aceito pela força da evidência, e porque todo homem que pensa nele reconhece a única solução possível dos maiores problemas da filosofia moral e religiosa. Sem a reencarnação, para-se a cada passo, tudo é caos e confusão; com a reencarnação tudo se esclarece, tudo se explica da maneira mais racional; se ela encontra ainda alguns adversários, mais sistemáticos do que lógicos, o número deles é muito restrito; ora, quem a inventou? Não foi, seguramente, nem vós e nem eu; ela nos foi ensinada, nós a aceitamos, eis tudo o que fizemos. De todos os sistemas que surgiram no princípio, bem poucos sobrevivem hoje, e pode-se dizer que os seus raros partidários estão, sobretudo, entre as pessoas que julgam sob um primeiro aspecto, e, frequentemente, segundo ideias preconcebidas ou preconceitos; mas é evidente agora que, quem se dá ao trabalho de aprofundar todas as questões e julga friamente, sem prevenção, sem hostilidade sistemática, sobretudo, é invencivelmente conduzido, pelo raciocínio quanto pelos fatos, à teoria fundamental que prevalece hoje, pode-se dizer, em todos os países do mundo. (KARDEC, 1993, p. 135-136). (grifo nosso).
COMENTÁRIO: Kardec mostra-se mais empolgado que lógico. Esticasse ele o olhar um pouquinho mais, veria que, poucos quilômetros além, na Inglaterra, espíritas não-reencarnacionistas bradavam contrariamente à reencarnação, assessorados pela mesma suposta espiritualidade à qual Kardec recorrera. Até mesmo em França Pierárt comandava vertente espírita contrarreencarnacionista. É falaciosa a afirmação de Rivail, de que a “teoria fundamental” prevalecia em “todos os países do mundo”. Será que os espiritualistas anglo-americanos não “aprofundaram as questões” a respeito do princípio da reencarnação, conforme sugeriu Rivail? O mais provável é que tenham refletido sobre a proposta e a rejeitaram! Por que será que não acharam nela os mesmos predicados que Kardec encontrou? A resposta parece-nos mui clara: a escolha se resumiu na simpatia que o codificador espírita votava ao reencarnacionismo.
ESPÍRITA: Temos, então, acima, os motivos que levaram Kardec a aceitar a reencarnação, o que indica, certamente, que não foi buscá-la no hinduísmo, conforme querem fazer crer os que, na falta de bons argumentos, tentam levar as para o lado do paganismo, com o objetivo de liquidar a questão. Por outro lado, fica aí registrada mais uma prova concreta de que os que assim agem nada sabem sobre o Espiritismo, fato lamentável para quem se propõe a criticar os out2ros sem conhecimento de causa.
COMENTÁRIO: Certamente, Kardec não necessitou buscar em fonte primitiva postulações de múltiplas vivências. Se o fizesse, provavelmente a doutrina kardecista seria diferente da que conhecemos. Idealizações reencarnacionistas, mais ou menos nos moldes propostos por Rivail circulavam em França na primeira metade do séc. XIX. Então, Kardec explica sua opção pelas múltiplas vivências asseverando que foi porque os espíritos a apóiam (óbvio, os “espíritos kardecistas”); também porque a proposição seria lógica e “explica tudo”. Em decorrência, diz Kardec, mesmo que os espíritos não a ensinassem ele a ela se agarraria; ou seja, Kardec acataria a reencarnação sob qualquer circunstância.
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