Os postulados espiritistas dos Britânicos eram incoerentes desde suas raízes. Como aceitar a existência de Deus, Espíritos, etc, sem o mais contundente mecanismo de justiça astral, qual seja a reencarnação?
Um bom argumento... desde que a reencarnação seja realmente o que propõe: “o mais contundente mecanismo de justiça astral”, e se não for?
No que tange à justiça reencarnativa, outro trecho da discussão referida:
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ESPÍRITA: "Se o autor prefere não acreditar no que Kardec disse acima, por querer manter-se firme contra a reencarnação, nada podemos fazer; porém, os fatos estão aí."
COMENTÁRIO: O belo discurso espírita − apoiado pela reflexão de Kardec −, pode parecer irretocável: afinal, Rivail, melhor que ninguém deveria saber por onde lhe chegou a certeza reencarnacionista. Se ele, portanto, diz que, antes de os espíritos se manifestarem sobre o assunto, nada cogitara a respeito, por que duvidar de sua experiência íntima?
Se nos detivermos na apreciação superficial, nenhuma razão haveria para opor óbice ao esclarecimento kardecista. Ocorre que o caso é um pouco mais complexo que possa parecer. Kardec alega que acatou o reencarnacionismo pelos motivos:
- a reencarnação é o mais completo conceito de justiça divina;
- é proposta lógica, e fora corroborada pela espiritualidade.
Analisemos mais detidamente a questão da “plena justiça”.
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“LIVRO DOS ESPÍRITOS:
Justiça da reencarnação
171. Em que se funda o dogma da reencarnação?
“Na justiça de Deus e na revelação, pois incessantemente repetimos: o bom pai deixa sempre aberta a seus filhos uma porta para o arrependimento. Não te diz a razão que seria injusto privar para sempre da felicidade eterna todos aqueles de quem não dependeu o melhorarem-se? Não são filhos de Deus todos os homens? Só entre os egoístas se encontram a iniqüidade, o ódio implacável e os castigos sem remissão.”
Todos os Espíritos tendem para a perfeição e Deus lhes faculta os meios de alcançá-la, proporcionando-lhes as provações da vida corporal. Sua justiça, porém, lhes concede realizar, em novas existências, o que não puderam fazer ou concluir numa primeira prova.
Não obraria Deus com eqüidade, nem de acordo com a Sua bondade, se condenasse para sempre os que talvez hajam encontrado, oriundos do próprio meio onde foram colocados e alheios à vontade que os animava, obstáculos ao seu melhoramento. Se a sorte do homem se fixasse irrevogavelmente depois da morte, não seria uma única a balança em que Deus pesa as ações de todas as criaturas e não haveria imparcialidade no tratamento que a todas dispensa.
A doutrina da reencarnação, isto é, a que consiste em admitir para o Espírito muitas existências sucessivas, é a única que corresponde à idéia que formamos da justiça de Deus para com os homens que se acham em condição moral inferior; a única que pode explicar o futuro e firmar as nossas esperanças, pois que nos oferece os meios de resgatarmos os nossos erros por novas provações.
A razão no-la indica e os Espíritos a ensinam.
O homem, que tem consciência da sua inferioridade, haure consoladora esperança na doutrina da reencarnação. Se crê na justiça de Deus, não pode contar que venha a achar-se, para sempre, em pé de igualdade com os que mais fizeram do que ele. Sustém-no, porém, e lhe reanima a coragem a idéia de que aquela inferioridade não o deserda eternamente do supremo bem e que, mediante novos esforços, dado lhe será conquistá-lo. Quem é que, ao cabo da sua carreira, não deplora haver tão tarde ganho uma experiência de que já não mais pode tirar proveito?
Entretanto, essa experiência tardia não fica perdida; o Espírito a utilizará em nova existência.”
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Vê-se que Kardec exalta o que parece ser uma verdade: a reencarnação promoveria integral reparação, perante Deus, dos atos reprováveis. Se numa existência não for possível viver condizentemente, na próxima os erros serão corrigidos. Caso não o sejam, novas vidas − quantas necessárias − serão disponibilizadas, até que aquela alma tome jeito... Foi isso que encantou Kardec e encanta seus seguidores: a possibilidade de um vaivém de duração indefinida, ou mesmo infinda, a proporcionar contínuo e inexorável progresso. Será que as almas, após numerosas idas e vindas, não entram em depressão, por ter que ficar nessa faina de nascer-morrer a perder de vista? Ou não cobram melhoria no processo, dizendo: ó Senhor, por que não nos faz recordar naturalmente as existências passadas para que possamos acelerar essa caminhada evolutiva? Do jeito que está, a gente sempre escorrega e não pode corrigir o rumo, tendo que repetir inumeráveis vezes experiências que seriam melhor sanadas se houvesse lembrança...
As explicações que Kardec deu para não haver recordações não esclarecem por que Deus optaria pela forma mais demorada e dolorosa de promover a evolução espiritual.
Tentaremos aprofundar a tese da “justiça reencarnativa”. Examinemos mais um texto.
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A TRAGÉDIA DE BIAFRA NA ÓTICA ESPÍRITA
Pior, tragicamente pior que a do Vietnam é a guerra interna de Biafra, onde uma disputa fratricida pelo poder extermina diariamente milhares de criaturas absolutamente alheias ao processo político da Nigéria.
São mães e crianças aparentemente inocentes que sofrem na carne a conseqüência da discórdia de seus lideres fanáticos, especialmente o diabólico general Ojkwo. Mas, então – é de se cogitar – onde está Deus? Como é possível explicar a hediondez que se vem praticando ali, num quadro incontestavelmente dantesco, contra populações civis inermes que só querem e só desejam a paz, não importa o governo que lhes dêem? Não consola a ninguém justificar tais atos de barbárie com os ignotos desígnios do Criador ou as origens pecaminosas dos seus ascendestes. Onde está a bondade de Deus? Onde, a justiça de Deus?
Meu caro leitor, somente o Espiritismo pode explicar a incongruência dessa cruel realidade. Somente a Doutrina de Allan Kardec consegue fazer luz nas trevas dessa incógnita, que, nos termos em que se nos oferece à razão, sem uma cabal explicação, resulta em desconsolo, desesperança e até revolta.
No “Grupo Ismael”, de que faço parte, na Federação Espírita Brasileira, em plena reunião, meu companheiro Francisco Thiesen interpreta para nós a mensagem do entendimento em torno do doloroso processo coletivo de Biafra. A ponderação é justa e precisa. Não há por que estranhá-la, tais os elementos de aclaramento que alinha.
Morrem em Biafra, sofrem ali os piores horrores duma guerra irracional, são torturados, queimados, dilacerados em Biafra, exatamente aqueles Espíritos que, há quase um quarto de século, integravam a horda nazista que tantas desgraças impuseram aos seus semelhantes! Repare-se que, essencialmente os jovens, as crianças acima de tudo, são as principais vitimas do abominável movimento separatista. Observe o leitor as imagens que as revistas nos transmitem: criaturas esquálidas, cadavéricas, morrendo de inanição no meio das ruas; esqueletos se arrastam nas sarjetas e a antropofagia começa a generalizar-se; os corpos se amontoam em tétricas pilhas, misturados aos quais há alguns que ainda se estertoram, mas para quem não há a mais mínima esperança de socorro; a cremação é a única solução e nela alguns mortos vivos vão gemer suas últimas dores.
Outros, ainda respirando, acabam devorados pelos abutres, quando não são as formigas que lhes vêm assinalar as derradeiras torturas físicas e psicológicas. A loucura encontra muitos deles; a peste extermina milhares; o suicídio responde pelo desespero de mães que a ele recorrem antes de consumar a dramática e incoercível necessidade de devorar as carnes dos próprios filhos!
Onde foi, mesmo, que já vimos esse quadro aterrador? Certamente em Auschwitz, em Dachau, em Buchenwald, campos de concentração alemães, nos quais os sanguinários nazistas faziam sabão de judeus e “abat-jours” da pele dos prisioneiros...
Não há por que por em duvida: alguns desumanos nazistas já voltaram e resgatam na própria carne os seus repulsivos crimes. É essa dura mas justa resposta que o Espiritismo oferece e que, antes de macular a perfeição de Deus, dá-lhe configuração equânime e sábia. O Cristo fora portador dessa implicação: “A cada um será dado segundo as suas obras”...
A Lei da Reencarnação é a única justificativa honesta e sem rebuços, que o Espiritismo trouxe aos homens e que basta para coloca-los diante dos efeitos da alegria ou da dor, da tormenta ou da paz, conscientes da sua verdadeira causa.
Isto vale dizer (e aqui entra o maior benefício que a Doutrina dos Espíritos legou ao mundo): devemos sopesar cada ato, cada palavra, cada pensamento nosso, pois em função deles faremos desenrolar o nosso amanhã, que bem poderá ocorrer na tranqüilidade e na despreocupação das areias de Copacabana, ou nas aquerônticas terras de Biafra...
E agora, se me perguntam, ainda, onde está Deus, posso responder conscientemente: Deus estava no Reich e não foi ouvido...
http://www.omensageiro.com.br/artigos/artigo-43.htm-----------------------------------------------
O artigo é assinado por Luciano dos Anjos e Herminio Corrêa de Miranda, duas figuras respeitadas no meio espírita, embora o primeiro seja tido por alguns kardecistas como “criador de casos”. De qualquer modo, o escrito serve para ilustrar a ideia de justiça reencarnativa com a qual lidam espíritas e similares.
Biafra era província da Indonésia: nessa região brotou atuante movimento separatista, cujo resultado foi sangrenta guerra civil. O Estado de Biafra teve duração efêmera, de 1967 a 1970. Na luta secessionista quem mais sofreu foi a população civil. Milhares e milhares de crianças, mulheres, idosos e homens adultos pereceram de fome, sede. As cifras dão conta que no conflito teriam morrido algo em torno de três milhões de biafrenses. A maioria de nós jamais poderá aquilatar a dor pela qual passaram aquelas pobres almas.
O quadro que Luciano e Hermínio descrevem mostra até que ponto pode ir a maldade e o descaso de homem para com seu próximo: "criaturas esquálidas, cadavéricas, morrendo de inanição no meio das ruas; esqueletos se arrastam nas sarjetas e a antropofagia começa a generalizar-se; os corpos se amontoam em tétricas pilhas" [...]
A Nigéria não aceitou a pretensão separatista de Biafra e isolou a nação de contato com o mundo, nem mesmo ajuda humanitária foi permitida, o que significou condenar a uma crudelíssima morte milhões de inocentes.
Reencarnacionistas “inspirados” explicaram a tragédia de Biafra pela aplicação da “lei de causa e efeito”: os miseráveis que definhavam até a morte estariam purgando crimes cometidos quando viveram na pele de nazistas e barbarizaram milhões de judeus e outras etnias.
Observado a distância, a postulação poderia parecer “lógica”: haveria quem concordasse que realmente pobres-coitados, em agonia famélica e sedentos a ponto de enlouquecer, estivessem quitando débitos cármicos. Mas, e a pessoa que sofria, o que diria dessa “interpretação” de sua dor? Concordaria?
Encontraria em tal fantasia explicativa consolo para suas mazelas?
Provavelmente discordaria e diria: não lembro de ter sido nazista, nunca me
senti nazista e tudo o que quero é um pouco d’água e comida...
Nem mesmo pensando reencarnacionistamente se poderia acatar a suposição.
Esperar-se-ia que os que cometeram barbaridades sob o Reich voltassem a viver em condição de reparar os crimes cometidos: deveriam, na erraticidade, planejar existências em que se tornassem dedicados a causas humanitárias e nelas laborassem sem interesses pecuniários. Algo nessa linha. Mesmo sendo, obviamente, uma fantasia tal conjectura, estaria mais coerente do que supor que Deus reencarnara milhões de nazistas e os pusera para morrer acossados de fome e sede, a fim de “aprenderem” que não deveriam ter maltratado seus semelhantes. Certamente, o Criador teria meios mais eficientes de implementar justiça...
A concepção de que a reencarnação dá a cada um o que é direito funciona somente quando se contempla, de forma mui superficial, a situação da humanidade, e a de cada pessoa isoladamente. Não há como controlar, nem conhecer, a “contabilidade” envolvendo débitos e créditos “cármicos”. Como alguém, em sã consciência, se sentiria satisfeito ante situação na qual seu progresso espiritual dependesse de seus atos, mas faltar-lhe-ia mecanismos para controlar o andamento do projeto? A alegação de que tal controle ocorre após o desencarne é mais fuga que propriamente explicação.
Se olharmos um pouco mais amplamente, observaremos que a natureza, em sua totalidade, não nos parece de modo algum justa. Animais carnívoros despedaçam outros seres para sobreviverem e mesmo dentro das espécies, canibalismos e “lei do mais forte” é a regra.
Nós mesmos cometemos “crimes” sem perceber. Diariamente matamos dezenas, centenas, milhares, de seres vivos. Muitos de nós trucidam baratas, lagartixas, sapos... simplesmente porque a presença desses incomoda. Há quem sacrifique animais para fins de alimentação sem o menor respeito pela dignidade desses, que dão a vida para que sobrevivamos: matam-nos sem piedade ante a dor que experimentam. Em vez de buscar meios de minimizar o sofrimento, não estão “nem aí” se os bichos passam seus últimos momentos atormentados. Os porcos, por exemplo, padecem horrores nas mãos de insensíveis...
Sob certo aspecto, seria bom que houvesse metempsicose, pois as pessoas sentiriam na pele o que os irracionais experimentam no convívio com os “seres humanos”... porém, para que a experiência tivesse efeito produtivo seria imprescindível lembrá-las.
Os reencarnacionistas certamente acreditam que o motivo da ausência de lembranças – que é um seríssimo óbice à validade da crença multividas – fora devidamente esclarecido por Rivail. Basicamente, o codificador argumenta sobre os graves problemas relacionais que recordações de existências pregressas ocasionariam. No entanto, essa explicação, que já era frágil quando Kardec a apresentou, perde cada vez mais sentido, considerando-se as múltiplas recordações que praticantes das regressões a vidas passadas alegam conseguir.
Embora, para nós, essas ditas lembranças não passem de pseudorrecordações, no universo reencarnacionista elas têm peso contestativo contra certos postulados defendidos por Denizard Rivail, notadamente o dogma do esquecimento.
A suposição de que viver várias vidas signifique “justiça de Deus” é falaciosa: além disso, a ausência de lembranças, e a consequente impossibilidade de corrigir desvios no projeto, conspurca a coerência da reencarnação.
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