Esse discussão já avançou muito sem que eu tivesse acompanhado e participado. Infelizmente, porque o prof. Martinho fez várias provocações interessantes que eu gostaria de ter comentado ou pedido mais esclarecimentos.
Porém talvez a provocação (no bom sentido) mais original tenha sido se valer de um argumento de Nicolo Maquiavel (logo de quem!) para justificar a moralidade das "estratégias" divinas. Uma ousadia a que nenhum teólogo anteriormente se atreveu. Pois se o livro de cabeceira da autoridade máxima desse mundo é "O Príncipe", de Maquiavel, então a humanidade pode começar a pensar que está realmente em sérios apuros.
Prof. Martinho nos ensina com brilhantismo que as estratégias que seriam convenientes a um dos homens mais perversos de seu tempo, aconselhadas por outro que é a origem do adjetivo "maquiavélico", são as mesmas que orientam os planos de um Pai Misericordioso para a redenção da Humanidade.
Afinal, não se poderia fazer omeletes sem quebrar ovos. Já dizia Mao Tse Tung, um dos maiores genocidas do último século. ( Em que pese ter quebrado muitos ovos sem nunca ter feito o omelete. ) E também "os fins justificam os meios", com o quê Adolf Hitler provavelmente concordaria.
Eu sei que preciso quebrar o ovo antes do omelete. Surpreendente foi conhecer que Deus, além de maquiavélico, é também assim tão limitado em seu poder onipotente.
Porque se Deus é mesmo onipotente não poderia nem precisar de meios para alcançar seus fins. Pois meios são processos, etapas ou instrumentos, subsídios que NECESSITAMOS para superar nossas LIMITAÇÕES. Imagine então que, privado dos meios, Deus não pudesse atingir seus fins: seria a negação do atributo da onipotência. Um Deus com necessidades e limitações não é Deus. Por definição.
O cirurgião, por mais brilhante, precisa de instrumentos e uma equipe para operar. Ele precisa de meios. O carpinteiro de ferramentas, o cozinheiro de ingredientes, o alpinista de cordas. E o Príncipe, de exércitos e estratégias. É isso que Nicolo Maquiavel pretende apresentar a Lorenzo de Medici em sua obra, os diversos meios de manter principados recém conquistados. E uma das maneiras sugeridas é POR MEIO da crueldade, por se fazer temer. Sob circunstâncias específicas, acredita Maquiavel, é "melhor ser temido que amado", pois o Príncipe é poderoso o bastante para instaurar o terror, mas o Príncipe NÃO é TODO PODEROSO. Não pode, por exemplo, escolher ser amado e manter o poder. É dessa forma que Maquiavel procura justificar os atos cruéis e imorais do Príncipe: ele NÃO TEM ALTERNATIVA a não ser fazer o mal menor para evitar o mal maior. Mas usar essa mesma lógica com Deus, não apenas é a suprema heresia, como O despe da própria divindade, pois sua condição de
Deus onipotente deveria Lhe facultar TODAS as alternativas, ou então não seria Deus.
Logo, se não há limites para o poder de Deus, como ensina a bíblia, então também não pode haver limites para a Sua responsabilidade. Ao contrário do Homem que é limitado em poder e conhecimento, restrito de muitas formas pelas circunstâncias e pela própria natureza ( circunstâncias e natureza DETERMINADAS por Deus, não pelo Homem, como também ensina a bíblia ), e portanto poderia gozar de atenuantes para suas falhas. Deus não tem desculpa: Ele não pode ser como o Príncipe que Maquiavel aconselha, obrigado a escolher entre uma coisa e outra. Ora, Deus não PODE ser OBRIGADO a NADA. Nem por ninguém, nem pelas circunstâncias e nem mesmo pelas consequências,
pois seu poder ultrapassa o infinito.
Quando alguém se livra dos antolhos da religião, se for minimamente inteligente ( e quem descarta estes comprova inteligência! ), percebe que a covardia mais pusilânime de Deus seria culpar ao Homem por suas próprias falhas, responsabilizar os atos de uma criatura insignificante por toda a imperfeição do universo, como se essa própria criatura não fosse parte deste mesmo universo, CRIAÇÃO DIVINA, e portanto qualquer defeito da criatura - inatos, potenciais ou adquiridos - só poderiam ser de única e total responsabilidade do Criador, ainda mais quando a imaginação religiosa reveste este Criador de um poder sem limites.
A retórica teológica judaico-cristã procura resolver essa inquietante contradição valendo-se de um suposto livre arbítrio, que Deus teria concedido ao Homem, e juntamente com este a responsabilidade por suas próprias decisões e escolhas. Mas não apenas o moderno conhecimento nos indica que em um universo de causas e efeitos, entrelaçados em contínua cadeia, e condicionados unicamente pelas leis invioláveis da Física, seria completamente sem sentido a própria ideia de livre arbítrio, ( algo que pesquisas no campo de neurologia confirmam! ) como também irei demonstrar que nem mesmo este argumento - o apelo covarde ao L.A. - eximiria Deus de responsabilidade por quaisquer consequências que advindas de Sua decisão de criar exatamente este universo, tal qual o é unicamente por obra e vontade absoluta Dele, seu Criador.
O calcanhar de Aquiles evidente nesse argumento é novamente, de maneira implícita, limitar o poder de Deus, destituindo-O do único atributo inalienável de uma natureza divina: a onipotência! O homem pode imaginar Deus como incognoscível, caprichoso, indiferente e até mesmo mau, mas ser Deus significa sempre ser onipotente. O que não significa necessariamente que Ele tenha que usar este poder infinito de forma moral e justa. Moralidade e justiça são atributos que a bíblia paradoxalmente acrescenta à natureza de Deus, mas onipotência ( que obviamente inclui a onisciência e onipresença ) não implicaria automaticamente na aplicação justa e piedosa deste poder infinito. Porém ser Deus implica necessariamente em possuir tal poder infinito.
Portanto examinemos aonde nos levaria o roto argumento judaico-cristão do apelo ao livre-arbítrio...
Deus é perfeito, e como tudo que um Ser perfeito faz, cria um universo perfeito e o Homem perfeito que nele habita. Mas Deus também não é um ditador e desejou criar este Homem, a joia da sua Criação, como um ser livre, capaz de fazer suas próprias escolhas, e isso, evidentemente, inclui a capacidade de escolher desobedecer ao próprio Criador. Algo que eventualmente o Homem acaba por fazer, ocasionando sua queda, e, de alguma forma não muito bem explicada, propagando essa imperfeição para outros aspectos do universo, que veio então a se transformar neste mundo de provação onde a dor e o medo prevalecem sobre as criaturas cujas vidas precisam se alimentar da morte, para, em uma contrapartida horripilante, suas próprias mortes serem reclamadas como alimento de outras vidas.
Quando questionado sobre a responsabilidade divina na imperfeição do mundo, o crente alega com ingênua convicção que a imperfeição foi escolha do Homem, não de Deus. Em que pese já termos observado que o Homem não tem realmente escolha, pois é meramente um sistema cujas ações são na verdade reações condicionadas por sua natureza humana ( determinada por Deus ) e as leis do universo que moldam todos os eventos causadores de tais reações, ainda assim o cerne desse argumento consistiria em recorrer a uma suposta impossibilidade lógica de conciliar a faculdade do livre arbítrio, com a garantia de que um ser criado livre não poderia errar por livre escolha.
Tal argumento parece lógico, e é! Porém a validade deste raciocínio está apenas determinada pela realidade que conhecemos. Nenhum ser humano é capaz de imaginar uma situação em que uma criatura possua real livre arbítrio e mesmo assim, de alguma forma, esteja restrita a apenas fazer escolhas perfeitas. Porque, logicamente, restringir escolhas é incompatível com a liberdade de escolher. Porém a falha grotesca nesse argumento, é que o crente transfere para o Deus onipotente uma limitação do homem, implicitamente afirmando que se nós, humanos, não poderíamos encontrar a solução para este dilema ( conciliar L.A. com impossibilidade de imperfeição ), então DEUS TAMBÉM NÃO PODERIA SOLUCIONAR ESTE PROBLEMA. Ou seja, o que o cristão está acreditando é que Deus não é realmente Deus, e muito menos onipotente. Contraditoriamente quando a própria bíblia afirma que "aquilo que é impossível ao homem é possível a Deus."!
Mais espantoso que a inconsciência desse paradoxo, é os crentes nunca enxergarem toda uma cadeia de paradoxos que decorrem dessa desculpa esfarrapada que inventaram para jogar no ser humano, pequenininho, ignorante e impotente diante das circunstâncias avassaladoras da vida, toda a culpa pelos erros na Criação de um Ser TODO PODEROSO.
Talvez a consequência mais séria deste tipo de argumento - para a teologia cristã - seja tornar irrealizável a promessa do Paraíso. Se é suposto que os salvos ( que tanto pecaram nesta vida ) ainda terão livre arbítrio no Paraíso, e se o argumento tem como premissa a impossibilidade de Deus impedir seres com livre arbítrio de pecarem, então não haverá nada que impeça as almas no Céu de errarem como Adão errou. Considerando que terão toda a eternidade pela frente para as oportunidades do pecado, logo é virtualmente certo que a Humanidade irá cair de novo, da mesma forma que no Paraíso original.
Portanto agora Deus não é somente aquele que erra e cria um mundo imperfeito, e também um fraco e mau caráter que não assume a responsabilidade por suas falhas e ainda transfere a culpa injustamente para o Homem, mas a Teologia cristã nos prova que Deus é também mentiroso. Faz uma promessa que NÃO É CAPAZ de cumprir: a perfeição do Paraíso. Pois o que o cristão está dizendo é que Deus não é capaz de garantir que as almas livres do Paraíso jamais irão pecar, da mesma forma que Deus não foi capaz de evitar o pecado de Adão sem restringir sua liberdade de pecar. E notem que o argumento ainda torna implícito que o Deus onipotente é impotente para resolver este problema, acrescentando ainda mais problemas a essa tentativa desastrada de solução teológica.
Mas, se Deus é mesmo onipotente, e tem o poder e a fórmula para garantir que almas com livre arbítrio existam por toda a eternidade sem jamais pecar, então isso implica que Ele não usou este poder quando criou o Homem apenas porque assim não desejou. Logo, se o Paraíso é possível, Deus é de fato onipotente. Porém injusto e mau!
E então ninguém sabe se será uma boa coisa ficar a mercê, por toda a eternidade, de um ser TODO PODEROSO, mas que é também perverso e sem apreço pela justiça.