Força interna
Com Olavo de Carvalho, a direita ganhou um discurso afiado e uma militância espontânea01/12/2018 18:08 Por Euler de França Belém Edição 2264
Uma prova de que Jair Bolsonaro entende a força da direita militante é o fato de ter escolhido para seu ministério nomes sugeridos pelo filósofo Olavo de Carvalho e Jair Bolsonaro: o filósofo deu ao presidente eleito uma militância espontânea e uma crítica corrosiva à esquerda
O discurso da esquerda é tão forte, porque contém a “verdade” dos que falam em nome do bem da humanidade — da busca da sociedade justa para os “escolhidos” (o marxismo é uma das primeiras religiões laicas da história), os proletários —, que praticamente sufoca os demais discursos. Fica-se com a impressão de que a fala da direita é troglodita e merece o opróbio coletivo. Por isso, embora tenha pensadores em todo o mundo, a direita eventualmente se esconde, se se pode dizer assim.
Durante anos, o economista Roberto Campos, de vasta cultura e de coragem indômita, escreveu e polemizou, quase de maneira solitária, com esquerdistas, que o chamavam de Bob Fields, sugerindo que era “entreguista” — o que, claro, não era. Tachar liberais de “entreguistas” era uma maneira de desqualificá-los e, de cara, retirá-los do debate. Quando o socialismo ruiu de vez, com a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991, sentindo-se vingado, o ministro do Planejamento do governo Castello Branco disse que deveria ser chamado de Robarchev. Tinha razão. Pois dizia, há décadas, que os ideólogos do socialismo, se se consideravam intérpretes precisos do capitalismo, não sabiam como fazer funcionar uma economia alternativa. Como modo de produção, o socialismo deveria ser superior ao capitalismo, segundo a teoria marxista-leninista, mas, em termos de produção e produtividade, era inferior, até muito inferior.
Roberto Campos: Bob Fields se tornou Robarchev por ter uma compreensão mais precisa dos fatos históricos e da economia
Assim como Roberto Campos, José Guilherme Merquior, mais filósofo do que sociólogo, enfrentou, sem receio, o samba de uma nota só da esquerda. Escreveu ensaios e artigos polêmicos para jornais. Quando denunciou um suposto plágio da filósofa Marilena Chaui, a casta acadêmica estrilou. Merquior, diplomata de carreira, seria um “esbirro” da ditadura, um “funcionário do Estado”, chegaram a dizer. Como se Marilena Chaui, professora da USP, não fosse uma servidora do Estado. No lugar de avaliar o mérito, o fato de que a filósofa havia copiado trecho de um livro do filósofo francês Claude Lefort — arregimentados para defendê-la, aliados criaram uma espécie de “afiliação de pensamento” —, uspianos trataram de tentar desqualificá-lo.
José Guilherme Merquior: um filósofo liberal que conhecia como poucos o pensamento marxista | Foto: reprodução
Um dos problemas da esquerda com Merquior é que, embora não fosse um companheiro de jornada, conhecia o marxismo muito melhor do que muitos de seus epígonos. Como o filósofo francês Raymond Aron, o filósofo brasileiro manejava como poucos o instrumental fornecido por Karl Marx e Lênin, embora fosse um expert em liberalismo e, sim, literatura (estudou, entre outros, Carlos Drummond de Andrade). Infelizmente, morreu ainda jovem, aos 49 anos. Sua obra, que vem sendo relançada, é de uma vitalidade que impressiona. Dado seu vasto conhecimento, para além da Filosofia, chegou a provocar “espanto” em Claude Lévi-Strauss.
Fertilizante da direita patropi
Pós-Roberto Campos e Merquior — ao contrário do primeiro, o segundo fazia uma crítica direta, sem permeá-la de um humor corrosivo —, a direita, durante certo tempo, se não desapareceu, parecia desarticulada. Aí “surge” o filósofo Olavo de Carvalho.
Mais polêmico do que Roberto Campos e Merquior, Olavo de Carvalho não foge de nenhum debate. Partilha de discussões com acadêmicos e chega a terçar forças verbais como se fosse um brigador de rua do estilo Kimbo Slice. Jamais foge de uma briga e, às vezes, usa um palavreado chulo. Seus críticos menos aquinhoados dizem que, mais do que filósofo, é astrólogo. É uma maneira de tentar diminuir o impacto de suas ideias.
Para além do polemista às vezes grosseiro — a grosseria da esquerda é sutil e, por isso, eventualmente aceita (e quando se fala em nome da salvação da humanidade, da igualdade para todos, pode-se tudo, até matar 100 milhões de pessoas, o que fizeram Stálin e Mao Tsé-tung, na União Soviética e na China —, há um filósofo de obra consistente? Poucos acadêmicos se deram ao trabalho de examinar os livros, os mais sólidos — e não as espécies de guias para militantes —, de Olavo de Carvalho. Ruy Fausto, filósofo marxista gabaritado, Ricardo Musse, filósofo marxista qualificado, e Joel Pinheiro da Fonseca, economista e mestre em Filosofia, são dos poucos que se deram ao trabalho de examinar ao menos parte da obra filosófica do, digamos, “oponente”.
Na “Folha de S. Paulo”, em artigos curtos e poucos densos, Joel Pinheiro da Fonseca se propõe a examinar o pensamento de Olavo de Carvalho, procurando indicar seus supostos exageros. Mas pelo menos o mestre em Filosofia demonstra algum conhecimento das ideias do filósofo de direita.
Se a obra de Olavo de Carvalho começa a ser examinada, ainda que sob parti-pris ideológico, há um aspecto às vezes negligenciado. Roberto Campos e Merquior têm leitores e admiradores, mas não tinham seguidores. Eram estrategistas de um exército de um homem só. Portanto, não eram ideólogos de nenhum movimento.
Olavo de Carvalho, pelo contrário, além de fazer a crítica do pensamento e ação da esquerda, criou, com seus cursos e livros, uma legião de admiradores e, sobretudo, seguidores. O filósofo “deu” à direita patropi não apenas um novo ideário. Deu-lhe seguidores, criando uma espécie de movimento ou movimentos, que, embora não tenha nome formal, ganhou as redes sociais e blogs. Se havia uma direita filosófica, praticamente sufocada pela onipresença da esquerda — expert em ocupar espaços em jornais, revistas e posições acadêmicas —, não havia uma direita militante, pelo menos não de maneira intensa. Pode-se sugerir que Olavo de Carvalho “refundou” a direita, abrindo espaço para outros intelectuais expressarem seu pensamento e não serem escorraçados.
Ao “refundar” a direita, dando-lhe seguidores e defensores, Olavo de Carvalho abriu espaço para intelectuais como Denis Lerrer Rosenfield, Luiz Felipe Pondé e (o português) João Pereira Coutinho. Os quatro não fazem parte de uma irmandade de direita, não pensam como militantes de um movimento, mas passaram a ser mais lidos e aceitos, em mais larga escala, com o “público” de direita “criado” pela força de Olavo de Carvalho como líder filosófico e, sim, político. Pode-se dizer que Olavo de Carvalho é o fertilizante da direita brasileira.
Dos cursos, dos debates de ideias e da crítica cerrada ao marxismo e à esquerda tropiniquim, os olavo-boys e as olavo-girls se tornaram senhores das redes sociais e das ruas. A esquerda, que não tinha adversário, ganhou um oponente radicalizado, com discurso afiado e intimorato. Não se trata de um exército mercenário, e sim de um exército espontâneo (só a esquerda tinha militantes espontâneos, em geral oriundos da universidade) — que mistura laicidade (menos) com religiosidade (mais), criando um novo sincretismo no país. Noutras palavras, a direita ganhou um “movimento”, ou melhor, “movimentos”.
Ideias de direita ganham hegemonia nas ruas
O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, já existia politicamente antes de Olavo de Carvalho e seus seguidores. Deputado federal, professava ideias conservadoras, mas sem consistência filosófica (até hoje, não é consistente em termos de ideias). Portanto, não se pode fizer que o filósofo o inventou ou reinventou. O que se pode indicar é que, direta ou indiretamente, criou um grupo espontâneo — parte da esquerda não aceita isto, porque, no fundo, está perdendo seu exército espontâneo, sobretudo depois da roubalheira do PT de Lula da Silva e José Dirceu — tanto para confrontar a esquerda quanto para professar as ideias de direita.
A direita articulada por Olavo de Carvalho acabou por “atrair” uma direita religiosa — o que potencializou Bolsonaro e seu discurso conservador (não deixa de ser curioso que há uma mistura entre conservadorismo e liberalismo na equipe de Bolsonaro que talvez, adiante, se torne explosiva. Em geral, os liberais são abertos em questões de comportamento, por exemplo). Ao mesmo tempo, há uma direita filosófica. A “turma” de Olavo de Carvalho “xinga” bem, no enfrentamento com a esquerda, e debate, com certa qualidade, com seus adversários e até mesmo entre si. Há até os que começaram como “olavetes” — como são denominados por certa esquerda — e ganharam autonomia e consistência filosófica.
A direita “fundada” por Olavo de Carvalho estuda, critica e participa. É a novidade. Antes, não participava de nada, quiçá por receio da força destruidora da esquerda. Os cursos e os livros do filósofo contribuíram para dotar a nova direita de um discurso, o que possibilitou o enfrentamento com a esquerda. Esta, em termos de militância, era imbatível. Não é mais.
Como Olavo de Carvalho criou um anticorpo contra a esquerda — a partir de curso pela internet ou pela leitura de textos e livros — e contribuiu para a direita lançar um candidato a presidente eleitoralmente consistente são questões pouco examinadas. Porque a causa da vitória de Bolsonaro e a ascensão e consolidação das ideias do filósofo têm sido buscadas tão-somente na fragilidade e ruína do PT. Como há preconceito contra Olavo de Carvalho, suas ideias não são examinadas com o devido cuidado por seus combatentes. Quem quiser confrontá-lo de verdade, com inteligência e agudeza, precisa estudar, com afinco e sem preconceito, o modo como suas ideias “produziram” uma impressionante direita militante.
Há uma nova direita no Brasil, mas, ao contrário do que diz a Imprensa, não se trata apenas de uma direita intelectual. Há uma direita militante, quer dizer, cabeça, corpo e membros. Bolsonaro é, em larga medida, fruto disto. Ao acolher indicados por Olavo de Carvalho no seu ministério, o presidente eleito percebe, mais do que a esquerda, o que de fato aconteceu e está acontecendo no Brasil. A direita, que não ousava dizer seu nome, agora o diz sem vergonha e sem medo. Sua agressividade assusta a esquerda porque, embora altamente agressiva, não tinha competidor neste campo. Para além das ideias, a esquerda ganhou um adversário em termos de militância e, em 2018, perdeu a batalha. A direita se tornou mais forte não apenas devido à fragilidade da esquerda do PT e do PC do B — o fantasma que desanda —, e sim porque ganhou uma filosofia assimilável, um líder (Olavo de Carvalho e, na política, Bolsonaro) e uma militância. A força da direita é interna, e não necessariamente externa (a derrocada petista).
https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/com-olavo-de-carvalho-a-direita-ganhou-um-discurso-afiado-e-uma-militancia-espontanea-151134/