Mediunidade e psicopatologiaEm 1910, um psiquiatra francês escreveu que "os salões espíritas são a ante-sala do asilo" (Lévy-Valensi, 1910, p. 715). Essa acepção expressava a idéia prevalente entre muitos médicos desde o século XIX de que a mediunidade era uma condição psicopatológica. Houve muitas publicações tentando relacionar a mediunidade à psicopatologia (Brown, 1983; Le Maléfan, 1999; Moreira-Almeida et al., 2005; Owen, 1990, pp. 139-151; Shortt, 1984). Em um artigo sobre as "Causas das Doenças Mentais", publicado em 1859 no North American Review, sustentou-se que o cérebro poderia se desequilibrar em virtude de fortes emoções e traumas. Em relação aos médiuns, haveria "muita excitação doentia e nada natural e os cérebros de muitos são agitados para além de suas capacidades de manutenção da saúde, motivo pelo qual alguns se tornam doentes" (Causes of Mental Disease, 1859, p. 334). Como se argumentou na revista médica inglesa Lancet: "Podemos encontrar a contrapartida do médium miserável nos pacientes histéricos semi-iludidos e semi-artificiais..." (The Delusions of Spiritualism, 1860, p. 466).
A alusão à histeria nos faz lembrar da importância do diagnóstico de histeria nas histórias da psiquiatria e da psicologia. Apesar de a histeria como enfermidade ter uma longa história (Gilman, et al., 1993), ressurgiu no século XIX, quando o trabalho de Charcot (1872-1873, capítulos 9-13) e outros (Gilles de la Tourette, 1891; Richer, 1885) popularizaram esse diagnóstico. Essa entidade protéica, considerada capaz de explicar todos os tipos de fenômenos e sintomas mentais e somáticos, foi usada por alguns para explicar casos antigos de sonambulismo magnético (Briquet, 1859, p. 412), hipnose (Charcot, 1882) e possessão demoníaca (Richer, 1885, Apêndice). A mediunidade rapidamente se converteu em um outro exemplo de histeria e, mais genericamente, de insanidade 20.
Nos Estados Unidos, os médicos George M. Beard (1839-1883) e William A. Hammond (1828-1900) eram ativos indutores da patologia da mediunidade. Beard fez referência às "estranhas atuações das médiuns histéricas..." (1874, p. 2). Da mesma forma, em seu livro Spiritualism and Allied Causes of Nervous Derangement, Hammond (1876, p. 256) afirmou: "Na maioria das sessões mediúnicas das quais participei, há manifestações de fenômenos histéricos". O religioso, poeta e médico norte-americano Frederic Rowland Marvin (1847-1919) defendeu a existência de uma síndrome particular que chamava de "mediomania" em seu curto livro The Philosophy of Spiritualism and the Pathology and Treatment of Mediomania (1874). Seguindo as antigas idéias da causação uterina das afecções e, particularmente, da histeria, Marvin acreditava que a mediunidade representava um caso de patologia uterina 21.
Janet (1889) notou que os médiuns eram propensos a "acidentes nervosos", tais como convulsões, tremores, crises nervosas e movimentos coréicos. Como grande variedade de automatismos era realizada sem o conhecimento consciente e com anestesia parcial, a mediunidade era vista por Janet como uma manifestação inferior da psique humana. Janet dizia que muitos médiuns eram "neuropatas, se não eram francamente histéricos" (p. 404). Acreditava que a mediunidade "depende de um estado mórbido particular" similar à histeria ou que pode desenvolver-se posteriormente para a histeria e outros tipos de distúrbios. Mas Janet (1889, p. 406) defendia que a "mediunidade é um sintoma e não uma causa". Ele continuou a discutir essas idéias durante o século XX.
Muitos outros médicos franceses continuaram essa tradição psicopatológica durante um bom período do século XX. Em seu livro Les Altérations de la Personnalité, Alfred Binet (1857-1911) relatou que "de tempo em tempo a maioria discreta dos autores não pode evitar afirmar que um excelente médium tinha tido uma crise nervosa..." (1892, p. 299). Consistentemente com essa visão, Grasset (1904) acreditava que "médiuns pertencem à família neuropática" (p. 256).
Importantes, ainda, foram os trabalhos dos médicos franceses Paul Duhem, Gilbert Ballet (1853-1916) e Joseph Lévy-Valensi (1879-1943). Duhem (1904, p. 131) classificou os médiuns em três categorias: os fraudulentos, os insanos e os mentalmente degenerados ou mentalmente fracos. Ballet acreditava que enquanto todos os médiuns eram dissociados, apenas um pequeno número deles cruzava a linha da insanidade quando, paulatinamente, se degeneravam para a condição de alucinados que colocam as próprias vidas em risco (Ballet e Dheur, 1903) 22.
Ballet (1913), em um posterior trabalho, propôs o diagnóstico de psicose alucinatória crônica. Esse consistia na dissociação como um traço essencial, acompanhado de idéias de perseguição, megalomania e alucinações. Ballet usou casos de mediunidade para dar apoio ao diagnóstico. Ele acreditava que a dissociação dos médiuns poderia se tornar uma psicose alucinatória crônica graças à prática habitual da mediunidade e à influência das predisposições individuais inespecíficas (1913, p. 503).
20 O próprio Charcot (1888) já havia ligado a mediunidade à histeria. Ele relatou o caso de uma menina de 13 anos e meio de idade, chamada Julie, que havia sofrido dos nervos desde a infância. Ela começou a se desenvolver como médium após ter participado de sessões de mesas girantes com sua família. Julie passou a escrever mensagens dos espíritos. Em uma sessão, ela havia terminado de escrever uma mensagem quando foi tomada por uma espécie de convulsão: "Então, Julie, com uma risada estridente, volta-se imediatamente e, como uma louca... corre para dentro e para fora de sua casa, manifestando gritos inarticulados, então rola e rola pelo chão, apresentando uma série de paroxismos histéricos caracterizados principalmente pelas contorções..." (p. 67). A menina teve de ser hospitalizada. Charcot considerava que esses casos ocorriam quando as pessoas com predisposições nervosas se envolviam com sessões mediúnicas e outras práticas congêneres.
21 Essas idéias devem ser compreendidas no contexto das crenças na inferioridade fisiológica da mulher quando comparada ao homem (Russett, 1989; Smith-Rosenberg e Rosenberg, 1973). Wood sustenta que no século XIX, nos EUA, a "análise médica das mulheres começa e termina com a consideração de um órgão único para ela, nominalmente seu útero (1974, p. 3). "Os nervos do útero", escreve o autor de The Diseases of Woman, their Causes and Cure Familiarly Explained, "estão relacionadas com quase todos os órgãos do corpo, assim como com a medula espinhal. Isso explica a razão de eles terem tamanha ação" (Hollick, 1855, p. 40). Para um exemplo da discussão britânica da variedade das condições nervosas e mentais como indícios dos problemas dos ovários, ver Lightfoot (1857).
22 Esses autores apresentaram o caso de um médico de 29 anos de idade que acreditava manter contato com os espíritos. O médico tornou-se um médium psicógrafo e usou a prancheta para produzir as mensagens dos espíritos. Seu desenvolvimento como médium, posteriormente, incluiu ouvir as vozes de espíritos, perceber os pensamentos e as predições oriundas dos espíritos e fenômenos físicos como os estalidos nos móveis. As vozes se desenvolveram a tal ponto que, sob a influência delas, ele tentou o suicídio. A personalidade do paciente começou a desaparecer e ele referia a si mesmo em terceira pessoa. Posteriormente, dedicou-se a propagar o espiritismo, abandonando tanto a medicina quanto sua esposa. O caso foi apresentado pelos autores como mostra da "progressiva desagregação da personalidade e do aumento das alucinações"
(Ballet e Dheur, 1903, p. 271).Lévy-Valensi (1910) não considerava a mediunidade necessariamente patológica, mas afirmava que os médiuns poderiam ter predisposição que os permitia facilmente cruzar a fronteira da insanidade, produzindo o que ele chamou de delírio espírita. O delírio, ele pensava, expressava-se após longo período de prática da mediunidade. Consistia de alucinações de diferentes tipos, sensações eróticas e problemas com as funções genitais, comportamentos de luta com perseguições alucinatórias e facilidade de espalhar a ilusão a outras pessoas. Ele apresentou uma lista de 17 médiuns dos quais seis se tornaram insanos em virtude da prática da mediunidade.
As discussões desses temas continuaram até tempos recentes (Ehrenwald, 1948; Encausse, 1943, entre outros). Por exemplo, em seu livro Telepathy and Medical Psychology, o psiquiatra Jan Ehrenwald (1900-1988) escreveu sobre a mediunidade de Eileen Garrett (1893-1970). Ehrenwald referia-se ao temperamento parapsicológico como tendo algumas similaridades com a histeria e a esquizofrenia, mas não que tivessem o mesmo significado. O temperamento mediúnico representa um tipo em si mesmo, mas que pode colocar a pessoa "à beira da desordem mental" (p. 181).
As discussões sobre mediunidade e psicopatologia eram mais complicadas que simples atribuições de distúrbios. Como Le Maléfan fez notar em seu livro Folie et Spiritisme (1999), foram propostos diferentes modelos de patologia entre os médicos franceses. Por exemplo, Janet via a mediunidade como sintoma e não como causa de patologia, enquanto Ballet via a patologia como efeito das práticas mediúnicas. Enquanto as especulações do relacionamento causal e fenomenológico da mediunidade e da patologia variaram de acordo com o teórico, nosso ponto neste trabalho é reconhecer a influência que a mediunidade teve no diagnóstico e na nosologia psiquiátrica 23.
23 Sobre idéias da patologia mediúnica no Brasil, ver Moreira-Almeida et al., (2005), Giumbelli (1997) e Zangari (2003, 2005). Existe, ainda, uma crença difundida de que aqueles que acreditam e mantêm algum interesse no espiritualismo, em geral, e nas práticas mediúnicas, em particular, estão sujeitos às doenças mentais de diferentes modalidades (Beard, 1879; Burlet, 1863; Hammond, 1876). Ver o caso de Charcot (1888) mencionado anteriormente, de uma médium de 13 anos e meio de idade cujos irmãos, por contágio mental, desenvolveram histeria compulsiva. Viollet (1910) argumentou que aquelas pessoas que são atraídas às sessões espíritas apresentam "predisposições nervosas hereditárias(...) em seus cérebros(...) [que podem] levá-las ao caminho da psicose degenerativa(...)" (p. 7). Essas pessoas, algumas vezes, apresentam sonambulismo espontâneo. "Elas se tornam sujeitos nas mãos dos médiuns(...) ou revelam-se, espontaneamente, médiuns de mesas girantes ou de fala" (p. 11). Field (1888) aceitava a idéia de que a excitação gerada pelas sessões mediúnicas poderia causar insanidade. Ele afirmava, no entanto, que muitas das ilusões atribuídas ao espiritismo poderiam ter uma causa mais geral em alguns casos, tais como a masturbação (p. 493). Em uma discussão posterior, O'Donnell (1920) sustentou que ninguém que atendesse às sessões mediúnicas habitualmente poderia escapar dos seus efeitos patológicos, "e se eles não aparecem tornando-os completamente dementes, eles certamente degeneram e os tornam distantes do normal" (p. 107). Houve casos, além disso, de pessoas que foram declaradas insanas apenas por terem crenças espíritas (Haber, 1986; Owen, 1990, pp. 154-167). Em complemento à variedade de modelos causais apresentados na associação mediunidade-patologia, há pelo menos dois exemplos de literatura específica que foram discutidos de várias formas. Brevemente, esses dois grupos afirmavam a natureza paranormal da mediundidade, mas enquanto alguns aceitavam a patologia (Lombroso, 1892), outros a repeliam (Delanne, 1902). Para uma discussão dessa última posição no Brasil, veja o repúdio do advogado e escritor Carlos Imbassahy (1884-1969) às alegações da conexão entre práticas espíritas e insanidade (1949).Fonte: Revista de Psiquiatria Clínica -Órgão Oficial do Departamento e Instituto de Psiquiatria Faculdade de Medicina - Universidade de São Paulo
Perspectivas históricas da influência da mediunidade na construção de idéias psicológicas e psiquiátricasCarlos S. Alvarado1 , Fátima Regina Machado2, Wellington Zangari3, Nancy L. Zingrone4
1 Professor-assistente de Pesquisa em Medicina Psiquiátrica, Division of Perceptual Studies – University of Virginia (EUA).
2 Professora, Faculdade de Comunicação e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
3 Pesquisador, Laboratório de Estudos em Psicologia Social da Religião do Instituo de Psicologia da Universidade de São Paulo.
4 Professora-assistente de Pesquisa em Medicina Psiquiátrica, Division of Perceptual Studies – University of Virginia
http://www.hcnet.usp.br/ipq/revista/vol34/s1/42.html