"As teorias da dissociação mental histérica e dos automatismos psicológicos, do médico e psicólogo Pierre Janet8 (1859-1947), foram as mais adotadas pelos psiquiatras para explicar a mediunidade. Janet considerava que na atividade mental normal haveria uma função de síntese que integrava as percepções sensoriais vivenciadas e transformadas em idéias conscientes. Nos histéricos, ocorreria uma fraqueza psíquica constitucional dessa função integradora, de maneira que eles eram mais sensíveis a se "dissociarem" por meio de sugestão ou em situações traumáticas; a teoria dos automatismos psicológicos explicaria os comportamentos nas crises dissociativas, quando "idéias fixas subconscientes" seriam reproduzidas (Nina Rodrigues, 1935; Morel, 1997).
Tal desagregação dos processos mentais, temporária em situações de transe, poder-se-ia tornar permanente, caminhando para a alucinação e o delírio. A maioria dos psiquiatras brasileiros concordava com a tese de que o espiritismo faria a maior parte de suas vítimas entre aqueles que já apresentassem certa predisposição psicopatológica, e muitos destes se manteriam nos limites da normalidade caso não fossem expostos repetidamente a fortes emoções (como nas sessões espíritas)."
"Apesar da concordância quanto ao caráter patogênico do espiritismo, havia divergências sobre quais seriam os quadros clínicos decorrentes. A maioria pensava que seriam desencadeados transtornos mentais já descritos na literatura, mas com o colorido espírita.
Henrique de Brito Belford Roxo (1877-1969) foi o principal defensor de uma tese mais ampla quanto ao caráter psicopatogênico do espiritismo. Chegou a criar uma nova classe diagnóstica, o "delírio espírita episódico", que foi apresentada em uma conferência médica realizada em 1936, em Paris. Seria uma doença freqüente, responsável por 5% a 10% das internações psiquiátricas. Procurava enfatizar que muitas pessoas não apresentavam perturbações mentais antes de freqüentarem as sessões espíritas (Roxo, 1938)."
"Um outro aspecto, que também mobilizou a classe médica contra o espiritismo, dizia respeito às terapêuticas espíritas empregadas para as doenças físicas e mentais. Os perigos representados pelo espiritismo para a sociedade não ficariam restritos apenas aos riscos do desencadeamento de transtornos mentais. As atividades de cura promovidas pelos espíritas também seriam uma importante fonte de riscos para a saúde da população. Essas práticas poderiam prejudicar a população, que seria levada a acreditar no tratamento espiritual e ficaria privada de uma assistência médica adequada.
O médico Carlos Fernandes (Jornal do Commercio, 1939a, d, g; Diário da Noite, 1939b, c, e, f; O Jornal, 1939) encaminhou moções para o Governo e o Ministro da Justiça solicitando punição para os espíritas que praticassem a medicina ilegalmente e intervenção policial nos centros, fazendo cumprir os Artigos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890, que criminalizavam as práticas espíritas. Tais artigos garantiriam o enquadramento dos "médiuns receitistas" 9 como charlatães e suas práticas como exercício ilegal da medicina.
O debate sobre a questão da legitimidade e da legalidade das "outras" práticas de cura acompanha o processo de institucionalização da medicina brasileira desde seu início, por volta de 1830. Com relação ao fim do século XIX, Schwarcz destaca que uma questão que ocupava constantemente as páginas da revista Brazil Médico, criada em 1887, era exatamente o problema do "charlatanismo". Na conformação de uma identidade de grupo, curandeiros, práticos e "herbalistas" surgiam como inimigos necessários, já que, ao apontar o "outro, curandeiro", mais bem se reconhecia a "nós, médicos" (Schwarcz, 2001, p. 222)."
Fonte: Revista de Psiquiatria Clínica 34, supl 1; 34-41, 2007
O olhar dos psiquiatras brasileiros sobre os fenômenos de transe e possessão
Brazilian psychiatrists' approaches on trance and possession phenomena
Angélica A. Silva de Almeida1,2, Ana Maria G. R. Oda3, Paulo Dalgalarrondo4
1 Mestre e doutora pelo Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
2 Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
3 Pesquisadora e professora colaboradora do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
4 Professor Titular do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.