Leafar, como você citou Kuhn, deveria saber que o espiritismo não alcançou nem a fase pré-paradigmática de uma disciplina científica, dado que nem ao menos é levado a sério como teoria a nível fenomenológico nem explicativo.
"A idéia básica da concepção kuhniana de ciência, exposta originalmente em A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962 (Kuhn, 1970), é a de que o desenvolvimento típico de uma disciplina científica se dá ao longo da seguinte estrutura aberta:
fase pré-paradigmática ciência normal crise revolução nova ciência normal nova crise nova revolução ...
A fase pré-paradigmática representa, por assim dizer, a pré-história de uma ciência, aquele período no qual reina ampla divergência entre os pesquisadores sobre quais fenômenos devem ser estudados e como devem sê-lo; sobre quais devem ser explicados e segundo quais princípios teóricos; sobre como os princípios teóricos se inter-relacionam; sobre as regras, os métodos e os valores que devem direcionar a busca, a descrição, a classificação e a explicação de novos fenômenos, ou o desenvolvimento das teorias; sobre quais técnicas e instrumentos podem ser utilizados, quais devem ser utilizados etc. Enquanto predomina tal estado de coisas, a disciplina ainda não alcançou o estado de genuína ciência.
Uma disciplina se torna científica quando adquire um paradigma, encerrando-se o período pré-paradigmático e iniciando-se uma fase de ciência normal. Em sua acepção original, pré-kuhniana, o termo "paradigma" significa "exemplo", "modelo". Daí advém o sentido filosoficamente mais profundo do termo, no contexto da filosofia da ciência de Kuhn. Ele propôs que a transição para a maturidade de uma área de investigação envolve o reconhecimento por parte dos pesquisadores de uma realização científica exemplar, que defina de maneira mais ou menos clara os principais pontos de divergência da fase pré-paradigmática. A mecânica de Aristóteles, a óptica de Newton, a química de Boyle, a teoria da eletricidade de Franklin estão entre os exemplos dados por Kuhn de paradigmas que fizeram algumas disciplinas adentrar a fase científica.
Um paradigma fornece os fundamentos sobre os quais a comunidade científica desenvolve suas atividades. Representa como um "mapa" a ser usado pelos cientistas na exploração da Natureza. As pesquisas firmemente assentadas nas teorias, nos métodos e nos exemplos de um paradigma são chamadas por Kuhn de ciência normal. Essas pesquisas visam, principalmente, à extensão do conhecimento dos fatos que o paradigma identifica como particularmente significativos, bem como o aperfeiçoamento do ajuste da teoria aos fatos pelo aperfeiçoamento ulterior da teoria e pela observação mais precisa dos fenômenos.
Quando um novo paradigma alcança a adesão da maioria da comunidade científica, substituindo, assim, o antigo, terá ocorrido aquilo que Kuhn chama de revolução científica.
Focando a atenção em uma classe mais específica de questões, ligadas à chamada "mediunidade", Almeida e Lotufo Neto propuseram que as investigações dessas questões, embora tenham sido empreendidas por diversos pioneiros da psiquiatria e da psicologia, foram abandonadas ainda "em um período pré-paradigmático’" (2004, pp. 139-140).
Ao lado desses domínios, porém, há outros sobre os quais predominam divergências sérias e generalizadas. Casos típicos são as relações entre saúde mental e espiritualidade, principalmente nas situações que envolvem as chamadas "experiências anômalas" e os "estados alterados de consciência". Nesses casos, há discordância sobre quase tudo, a começar pela própria realidade dos fenômenos. Admitida essa realidade, não há unidade de vistas sobre os padrões e as condições em que se apresentam e, sobretudo, sobre sua explicação. Não há, pois, nenhum enfoque teórico único direcionando a pesquisa, o que configura uma típica situação "pré-paradigmática".
Nem por isso, no entanto, a pesquisa fica aí inviabilizada. Situações desse tipo representam, antes, um estimulante desafio para as mentes criativas, herdeiras modernas do antigo ideal da busca do saber pelo saber, que caracterizou o advento da filosofia, na Grécia Antiga. Deve, no entanto, haver consciência exata da situação, para que o treinamento típico do cientista – que visa à formação apenas de um cientista "normal", no sentido kuhniano – não interfira negativamente no avanço das investigações."
fonte: trechos extraídos de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832007000700003&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
Quando eu me referi a Kuhn e Popper, na realidade era só para mostrar ao Contini que o chão que ele pisa e que ele achava que era firme, também não é tão firme quanto ele parecia estar supondo.
Mas foi interessante você entrar mais fundo nos conceitos kuhnianos, porque mostra que o desenvolvimento da ciência é progressivo, não necessariamente numa linha reta, mas às vezes com alguns retrocessos e que significam na realidade um passo para trás para depois dar vários outros à frente. Isso quer dizer que os princípios aristotélicos, os de ptolomeu, os de Hipócrates e Galeno, etc..., apesar de terem sido em grande parte deixados de lado por terem sido refutados, nem por isso devem ser considerados menos científicos para o tempo em que vigoraram.
Baseado nisso, podemos falar em Ciência mais atrasada e mais adiantada. Por exemplo, a física aristotélica era uma física mais atrasada do que a física newtoniana, que por sua vez é uma física mais atrasada do que a física einsteniana, e assim sucessivamente. Mas nem por isso todas elas eram menos científicas a seu tempo. Todas elas passaram por seus respectivos períodos de ciência normal e de crises. Aristóteles não é ciência hoje, mas já foi um dia legitimamente científica.
Kuhn dizia, e eu concordo com ele, que nos períodos de ciência normal, os novos cientistas precisam aprender a resolver os problemas usando as regras vigentes a seu tempo, cujo conhecimento provém principalmente das escolas e universidades. Somente quando as regras vigentes começam a se mostrar insuficientes para resolver determinados problemas, é que acontecem os chamados períodos de crise e delas podem advir as chamadas revoluções científicas. Durante os períodos de crise, vários filósofos defendem diversas teorias para resolver as "crises", na maior parte das vezes contraditórias entre si, até que finalmente uma acaba prevalecendo sobre as outras, que são então descartadas, donde se entra novamente em outro período de ciência normal com a tese sobrevivente e o ciclo se repete.
O Espiritismo é uma ciência enquanto é experimental. Pode-se até argumentar contra o fato de ele não se submeter às regras da ciência vigente oficial, que é de cunho majoritariamente materialista; pode-se até tentar argumentar que o Espiritismo seria uma ciência feita de modo ultrapassado, que requer condições especiais, etc... Mas da mesma forma que não se pode qualificar aristóteles de anti-científico a seu tempo, também não se pode qualificar o Espiritismo de anti-científico em nosso tempo, ainda que o Espiritismo fosse falso e que as deduções tiradas a partir das observações não fossem precisas. Para qualificá-lo de anti-científico hoje, antes deveria-se provar que as observações são falsas ou forjadas. Mas o que se diz apenas é que "não são confiáveis", ou "não são colhidas em condições completamente controladas", ou "não se pode ter certeza que era um espírito mesmo", etc... Ora, "não são confiáveis" não quer dizer necessariamente "são falsos", pois isso pode representar apenas uma miopia de quem não seja capaz de perceber a lógica das deduções e conclusões. Logo, como não há uma conclusão definitiva pela negativa, não se pode declarar o Espiritismo, enquanto experimentação, de anti-científico.
Mas o fato é que os espíritas convictos, hoje, vivem o que se poderia chamar de "período de ciência espírita normal", pois, o que é que se faz em períodos de ciência normal? Tenta-se resolver todos os problemas pertinentes de aplicação usando a teoria sobrevivente. Se houvesse alguma situação em que o Espiritismo, ou seja, o paradigma vigente, não pudesse oferecer uma resposta satisfatória em uma situação relevante, iniciaria-se uma crise entre os espíritas. Mas é o que ocorre hoje? Não há uma única situação pertinente aonde a teoria espírita falha em resolver logicamente um problema moral, não há uma única situação aonde o Espiritismo não consiga conciliar a bondade e justiça divinas com a realidade observada, etc... Por isso, os espíritas vivem hoje o que se poderia chamar de "período de ciência espírita normal", aonde se tenta apreender o melhor possível os paradigmas vigentes, ou seja, a Doutrina Espírita e, com eles, e só com eles, resolver todos os problemas pertinentes à sua área de atuação, que são os aspectos morais.
Então, repare que mesmo aí o Espiritismo tem semelhança com o movimento científico oficial. Apenas a área de atuação é que é diferente. O Espiritismo pode não ser levado a sério por quem não concorda com a sua base paradigmática, o que é um direito de qualquer um. Eu também, se quisesse, poderia não concordar com as bases paradigmáticas da ciência oficial, por achar que ela possuísse algum furo lógico. Mas o fato de o Espiritismo ser aceito como paradigma pelos espíritas, e até mesmo por vários espiritualistas, como foi o caso do umbandista que apareceu por aqui outro dia, significa que para estes, a Doutrina Espírita já se encontra na fase paradigmática de ciência normal, aonde se tenta resolver todos os problemas morais inerentes à humanidade como um todo aplicando os princípios da Doutrina Espírita. Não me recordo de haver alguma situação que o Espiritismo não me ofereça uma resposta satisfatória para algum problema moral. Logo, para nós, o Espiritismo está em fase de ciência normal, e não em fase de crise.
Você pode até afirmar que existem várias teorias concorrentes com o Espiritismo e que ele não é tão paradigmático assim entre os espiritualistas. Mas todas elas obedecem à lógica? Todas se esforçam para serem filosóficas? O Espiritismo é até acusado de não ser lógico e, consequentemente não ser filosófico, o que eu discordo forma veemente. Mas ainda que ele contivesse furos lógicos, obviamente não percebidos pelos espíritas, que o invalidassem como filosofia, ainda assim o Espiritismo quer ser, não abre mão de ser e se esforça para ser filosófico. Há outros sistemas que não fazem esse esforço, que rejeitam explicitamente a filosofia, que simplesmente dão de ombros para as contradições internas e externas, que tiram conclusões não decorrentes das premissas, etc... Então, esses sistemas não se podem comparar ao Espiritismo. Só se pode comparar o Espiritismo a outro sistema que no mínimo faça questão de se ser filosófico, que faça questão de resolver todos os problemas pertinentes, que faça questão de não deixar pedra sobre pedra com relação a contradições internas e externas, ou seja, que ao menos se esforçe para cumprir todos os requisitos mínimos para que possa ser reconhecido como Filosófico. Muito poucos sistemas concorrentes cumprem esses requisitos.
Um abraço.