Julian,
Você abordou várias questões bem interessantes. Mas antes de discuti-las
é preciso esclarecer alguns pontos onde parece que vc está fazendo uma
pequena confusão.
Primeiro: mecanismo não significa necessariamente algo de origem mecânica ou o
componente de alguma máquina. Isto é só o que chamamos de "figura de linguagem".
Se você ler, na seção de Economia do seu jornal, algo como "os mecanismos
utilizados pelo governo para controlar a inflação..." você iria deduzir disso
que em algum lugar no Banco Central existe uma grande máquina, um enorme
sistema mecânico, cheio de engrenagens, projetado para controlar a inflação?
Se eu usei o termo "mecanismos" foi no sentido de processos. De questionar
como, por quais processos fisiológicos, elétricos, bioquímicos, ou outros
o cérebro pode gerar este evento extraordinário que chamamos de consciência.
Talvez se eu apelar para mais um exemplo fique claro finalmente: a glândula
pituitária é responsável pela produção do hormônio ocitocina. Se eu te
perguntasse o que é a ocitocina você saberia defini-la em termos de sua
composição química. Se você quisesse entender como a hipófise produz ocitocina
, ou seja quais os processos ( ou mecanismos ) utilizados pela hipófise
para a produção deste hormônio, você certamente procuraria por uma descrição
fisiológica do funcionamento da hipófise e essa descrição o levaria a
um perfeito entendimento de como um determinado hormônio é produzido.
Quanto mais profunda e acurada for a descrição ou a compreensão de
como a hipótese funciona mais acurado e profundo será o seu conhecimento
sobre a produção da ocitocina.
Isso, parece ser evidente, não se aplica ao nosso binômio cérebro-consciência.
Mesmo admitindo a hipótese provável de que o cérebro seja a causa da consciência
assim como a glândula pituitária é a causa da ocitocina, descrever a fisiologia
do cérebro não acrescenta nada ao nosso entendimento sobre como a consciência
surge a partir dos processos fisiológicos de um cérebro. A menos que você me
demonstre o contrário, o que me deixaria imensamente feliz.
Entender como o cérebro funciona sem dúvida te leva a compreender como a
memória é bioquimicamente armazenada, como funciona a estrutura especializada
em reconhecimento de rostos, como a linguagem é processada, como é aprendida,
etc... Mas nada disso ascrescentaria nenhuma informação sobre como surge a
consciência e até mesmo sobre o que é a consciência.
Portanto, a menos que se explique como se pode estabelecer esta relação,
considerações sobre o que o cérebro faz e como faz não ajudam em nada a
responder a questão que eu coloquei.
A segunda coisa importante para a gente não continuar andando em círculos nessa
conversa é que se eu não consegui "descrever estes mecanismos" como você diz é
por uma única razão: porque eu não sei que mecanismos são estes. Não faço a
menor idéia, não tenho pistas, não arrisco sequer uma hipótese.
Essa é justamente a pergunta que estou fazendo e que eu daria tudo para que alguém
respondesse.
Ora, se eu soubesse não estava lhe perguntando. Eu não tenho hábito de perguntar
sobre o que eu já sei.
E já é a segunda vez que vc me pede respostas pra pergunta que eu te fiz. Acredite,
estou sendo honesto, realmente não sei.
Me descreva, me explique, me instrua sobre como um sistema biológico é capaz de
ter-gerar consciência e para mim a questão está encerrada. Não precisa nem ser
uma explicação muito profunda, eu me contentaria com uma explicação compatível
com o nível de entendimento que um clínico geral tem sobre a produção da ocitocina.
Agora, você fez outras considerações interessantes que convergem pra essa questão
que a gente tá discutindo. Ao contrário do que imagina a ficção científica não é
possível que o paradigma atual de computação venha a produzir um sistema capaz
de ter consciência. Um andróide como o de Blade Runner não poderia ter um chip
sofisticado no lugar do sistema nervoso. O computador, da forma como o concebemos
hoje, por mais avançado, por mais complexo, por mais sofisticado, jamais será um
sistema consciente. Inteligência artificial sim, mas saber que existe não.
Como disse o Karpov após ser derrotado pelo Deep Blue:
"Bem, ele me venceu... mas não se divertiu com isso."
As outras coisas que você coloca não ajudam muito a entender como um ser vivo
se tornou consciente mas tocam em questões filosóficas muito profundas que
nos levam a questionar o que é a realidade e até se ela existe ou se seria
possível defini-la. Eu nem queria entrar nessas considerações porque aí já é
metafísico demais mas o que você está dizendo, em essência, é que nós jamais
saberemos realmente como a realidade é e o que é. Que todas as nossas informações
são subjetivas porque são intermediadas pelos sentidos, pelas emoções, pelo
raciocínio, enfim, pela própria estrutura do nosso cérebro.
Tudo que chamamos de realidade é apenas uma representação da realidade criada
pelo nosso cérebro e então apresentada à nossa consciência! Realidade essa, se
a gente quiser viajar muito, que em princípio pode até não existir.
Veja, perceber isto responde as duas próximas questões que você coloca.
1 - Como eu posso ter certeza do que é a consciência?
2 - O que sou EU afinal?
Eu não tenho certeza do que é a consciência no sentido de que não sou capaz de
defini-la. Mas não ser capaz de definir algo não significa que você não o reconhece.
Na verdade quanto mais simples e mais imediata a sua percepção de algo mais difícil
defini-lo. É fácil definir o que é uma equação diferencial mas ninguém define o que
é uma cadeira embora reconheça imediatamente uma quando a vê.
Eu não tenho certeza do que é a consciência mas a consciência é a minha única
certeza. Tudo que você disse demonstra como a única coisa com a qual nós vamos
nos relacionar diretamente durante a nossa existência é justamente a nossa própria
consciência. Você tem razão, quando eu vejo um objeto azul ele não é realmente azul,
ele não tem forma, não é duro ou macio, não é frio ou quente, todas estas coisas
são representações que o meu cérebro cria e que são apresentadas desta forma à minha
consciência de algo que eu nunca vou saber realmente como é e até se existe. Os
delírios de um esquizofrênico são tão reais para ele quanto estes objetos em cima
da minha mesa são reais pra mim.
A única certeza que eu e o esquizofrênicos podemos ter é que "penso, logo existo."
Embora o mais correto é que o filósofo tivesse dito "tenho consciência, logo existo".
Pensar não é o que me faz existir. Pensar é algo tão separado de mim quanto o meu
pâncreas. Eu TENHO pensamentos mas não sou pensamentos, da mesma forma que eu tenho
um pâncreas mas não sou um pâncreas. Você mesmo quase matou a charada quando diz que
os seus pensamentos ocorrem simultâneamente produzidos a sua revelia como um coração
que bate a sua revelia ou seu estômago produzindo ácido gástrico. Ora sua atenção
( consciência ) se volta para um pensamento ou outro, para uma percepção em particular
entre as milhares que te chegam a cada instante, e você as examina, de fora. O seu
ser é afetado pela sua mente mas o seu ser não é a sua mente.
O que nos leva a segunda questão: O que sou EU? O que é o ser?
O ser é a consciência, existindo apenas no instante presente.
Entender como e de onde surge a consciência é entender como e de onde EU surgi.
Por isso essa questão é tão importante pra mim e permanece aqui para alguém que
puder respondê-la: como um sistema biológico se torna consciente?