Você não está me entendendo. Estou dizendo que o pacifismo não é a conclusão óbvia de qualquer articulação racional. Ele só é alcançado se você partir de uma série de premissas já pacifistas por princípio. Tanto a guerra quanto a paz são absolutamente racionais se você escolher as premissas certas - e a escolha por uma ou pela outra está além da razão. Puxando um pouco para o Existencialismo aqui, o homem não tem um essência pacífica nem guerreira, isso é uma escolha a priori pela qual devemos nos responsabilizar. "O homem está condenado a ser livre."
Negativo. Não se pode realmente justificar a mentalidade belicista de forma racional. O que
pode acontecer, mas é completamente diferente, é ter uma capacidade racional restrita a modelos que não consigam transcender o belicismo.
(...) E como é que eu vou provar uma negação? Toma que o ônus é seu
Não vai, e por isso, na falta de um bom motivo em contrário, eu tenho o direito de duvidar dela.
Peraí, por falta de evidência negativa você duvida da minha negação da sua afirmação de que os animais são racionais. Em outras palavras, você acredita e pronto, mesmo sem ter evidências positivas que suportem sua crença.
Evidências científicas, epistemológicas, realmente não tenho. Por isso tenho o direito, e talvez a necessidade, de exercitar minha fé e até mesmo fazer escolhar arbitrárias.
Para mim você acaba de admitir que tem fé -- e a fé do primeiro tipo. Você poderia acreditar no Saci-Pererê também, já que eu não tenho provas de que ele não existe.
É fé, sim. Fé em que
não faz sentido buscar algo que não pode levar a nada de desejável, e portanto devo me dedicar às alternativas que
tenham alguma chance de consequências construtivas, mesmo que seja uma chance pequena ou que só possa se consolidar daqui a muitas gerações.
Seria fé supersticiosa? Até onde percebo, não. Mas se quiser elaborar...
Um exemplo com animais que se sabe não serem racionais (abelhas) não pode provar nada sobre o que animais racionais como símios e humanos fazem com sua capacidade de raciocínio, Gabriel. No máximo pode pôr em dúvida se o raciocínio está envolvido em certas atitudes.
E não era isso que eu estava defendendo desde o princípio?
Não pelo que eu entendi. Você parecia estar defendendo uma idéia mais ousada e mais radical, de que instintos e razão excluem-se mutuamente.
Os fundamentos mais básicos de nossa moral não foram pensados eles são necessidades evolutivas.
Os mais primitivos, talvez, mas não necessariamente os mais básicos, ou mesmo os que sobreviveram até hoje.
O "não matarás" é um exemplo. Por mais que possamos elaborar racionalmente uma ética mais elevada, incluindo conceitos bem mais complexos, como "não prestarás falso testemunho do teu próximo", esses conceitos têm que partir de uma premissa mais básica, por exemplo, a premissa de que todo ser humano é igual em valor; ou de que existe um Deus que tudo vê e tem uma lista de dez coisas que ele não quer que você faça; ou de que o que interessa é eu me dar bem e danem-se os outros; etc. Pode até ser que essas premissas não sejam tão básicas assim e possam ser reduzidas a outras, beleza, mas acontece que não podemos reduzir ad infinitum, nós precisamos tirar nossos princípios de um ponto de partida que não é racional - e eu não estou falando nada de absolutamente novo aqui, pergunte para Gödel se não acreditar em mim. Não temos um axioma universalmente válido, temos no máximo as restrições que a evolução nos impôs, mas elas são frouxas o suficiente para podermos elaborar uma miríade de filosofias morais (ou amorais), todas igualmente racionais.
Se te entendi corretamente, você pode estar confundindo a origem histórica da moral com sua sustentação racional e filosófica. Só porque o início da moral veio de instintos biológicos e superstições não se segue que ela não possa, não deva ou não tenha sido ainda devidamente estruturada em termos racionais.
Acho que valores éticos são em muitos casos herdados em um primeiro momento, mas quando se tem de tomar as decisões e pagar os preços envolvidos, acabamos por raciocinar a respeito e pesar os prós e contras.
O simples fato de haver prós e contras como parâmetros de decisão já implica em uma escolha arbitrária.
Arbitrária ou ponderada?
Quem garante que os seus prós são iguais aos meus prós e os seus contras sejam iguais aos meus contras?
Em muitos casos não serão mesmo. E por esse motivo, entre outros, é preciso que as escolhas morais sejam bastante ambiciosas e fundamentadas nas compreensões mais amplas possíveis dos quadros globais,
bem como das particularidades locais e circunstanciais.
Não vejo como se possa sequer tentar fazer algo assim sem a razão.
E como escolher qual conjunto de valores é melhor? Repetindo o que já disse acima, temos no máximo algumas restrições que nos foram impostas pela evolução - e elas mesmas não são racionais. O resto são outras escolhas a priori que fizemos... e que também não são racionais.
Não entendi.
Com certeza é possível - e não duvido que seja também necessário ou até mesmo inevitável - raciocinar sobre valores morais ao ponto de revê-los e mudá-los.
Isso será inevitável se você perceber uma contradição de valores, ou um erro de lógica que você cometeu antes, ou reconhecendo que sua premissa é flagrantemente absurda.
Ou simplesmente percebendo consequências indesejáveis (e supostamente imprevistas) do exercício da moral até então vigente.
Afinal, a moral não é um subconjunto da lógica pura, e sim uma disciplina aplicada que tem de ser calibrada pelos fatos concretos.
Mas analisando os seus princípios você não vai encontrar motivo racional para trocar de um conjunto de princípios para outro. O que não quer dizer que não seja possível mudar de maneira nenhuma, só quer dizer que a mudança não será racional.
Mas a origem dos motivos para mudá-los será sempre e necessariamente externa, já que estamos falando de moral e não de lógica abstrata. Portanto não importa se há ou não algum motivo interno (contradição ou outro) para mudá-los.
Até porque a razão moral não existe solta no vácuo: ela precisa levar em consideração impactos sociais, econômicos, ecológicos, antropológicos. Do contrário, não terá muita credibilidade ou utilidade nem como moral nem como razão. Moral só faz sentido a partir de consequências no mundo real.
Ao levar em consideração os impactos você já está supondo fins sociais econômicos, ecológicos e antropológicos que você considera bons e maus. Isso já é uma escolha arbitrária.
Arbitrária, talvez. Mas não aleatória, muito menos irracional.
Por mais que a razão possa ser usada como um meio adequado para prever as consequências que você quer no mundo real, ela não pode definir que consequências você quer em primeiro lugar.
Sozinha, não pode realmente. Mas ela pode e deve servir para analisar as circunstâncias concretas e as relações de causa e efeito e avaliá-las.
Ressuscitando o debate capitalismo x comunismo, para dar um exemplo, você poderia considerar como uma consequência desejável de seu modelo de sociedade a igualdade social; eu poderia preferir a liberdade econômica. Hoje nós já temos boas evidências empíricas de que o comunismo não dá muito certo, mas cem anos atrás esse dilema seria bem mais complicado.
Não sei se cabe uma comparação dessas, mas a solução para o dilema é a mesma nos dois casos: transcender o modelo e refiná-lo a partir do confronto com os fatos reais.
E de fato, a diferença entre a religião e a filosofia não é nada nítida. Basicamente, toda filosofia que aborda questões de valores morais e sua conexão com atos concretos é automaticamente uma religião. Dois bons exemplos são o Estoicismo e o Objetivismo. Provavelmente o Utilitarismo, também.
Não vejo por que isso seria um problema, porém.
Acho que você será a única pessoa do mundo a considerar o Estoicismo e Objetivismo duas religiões.
No caso do Objetivismo de Ayn Rand, pelo menos, não creio que seja.
Se você não vê como isso seria um problema, experimente definir livro como um meio de transporte áereo inventado por Santos Dumont (ou pelos irmãos Wright) no começo do século passado.
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