A religiosidade está muito para além do teismo, do ateismo ou do agnosticismo, nem resulta do terror (embora também) mas mais da ânsia de conhecer, de perceber.
No meu entender ela está aquém (sem ser pejorativo) dos conceitos supramencionados, pois estes requerem um grau de cognição mais sofisticado.
A criança que não fosse formada em qualquer religião, não tenderia a ter um respeito inviolável por nada?
Qual seria a idade desta criança?
Ela pode ter um respeito inviolável pelo meio-ambiente ou pelos outros humanos. E isto se consegue no ambiente secular, sem qualquer problema.
nada aceitaria pois como sagrado?
Se ocorrer algum tipo de doutrinação neste sentido, a resposta é sim.
Do contrário não vejo o porque que ela desenvolveria um conceito de "sacralidade sobrenatural".
tentaria a desenvolver qualquer forma de ligar a entes queridos falecidos?
A manifestação de carinho e de saudade para com uma pessoa morta pode ocorrer, por exemplo, com o respeito às memórias dela, dos seus trabalhos e de suas realizações. Não há qualquer necessidade de cultivar uma relação de sobrenaturalidade, em particular aquela modalidade que gera a expectativa de um "reencontro" com os entes mortos.
Eu frequentemente conto ao meu filho que tem 5,5 anos, alguns causos que eu passei com as minhas avós. Uma que eu gosto, em particular, é a de que nos verões mais quentes eu ia até a casa de minha avó materna e retirava água do poço com um balde e então bebíamos juntos aquela água límpida e de temperatura na faixa de 18
oC. Um simples e singelo prazer que gerou uma forte lembrança em minha memória.
Nela não haveria manifestação de arquétipos do inconsciente?
Pode ser. Mas na análise psicológica jungiana, os mitos e os sonhos também podem ser a origem destes arquétipos.
Não é a religião manifestação desses arquétipos?
A religiosidade pode ser. A religião não, porque esta já representa um sistema organizado de conceitos.
não recorreria a estratégias não puramente racionais para responder ao problema e consciência da morte, dos outros e da sua?
Uma criança certamente pode desenvolver uma explicação coerente para o conceito de morte biológica.
Mas há a necessidade de alguma outra explicação fora deste contexto?
A resposta certamente estará relacionada ao meio onde esta criança vive. Famílias com religião passarão explicações diferentes de famílias atéias.
não perguntaria porque existe algo em vez de nada, e não perguntaria se não houve uma primeira causa incausada?
Acho que não, porque eu duvido que ela seja capaz de elaborar uma definição adequada do "nada ontológico", porque é contraintuitivo e afinal de contas, como afirma Mário Novello, "é impossível a não-existência de algo".
A mesma incapacidade dela se aplica à compreensão do argumento cosmológico. Eu sinceramente acho que é mais fácil ela entender intuitivamente o argumento do Universo Eterno.
as perguntas donde vimos e para onde vamos não surgiriam no seu espírito e não aceitaria que a ciência nunca poderá explicar tudo?
Está claro para mim que somente jovens ou adultos com algum conhcecimento sobre metafísica teriam condições de formular as perguntas contidas neste e no item anterior.
As perguntas "de onde viemos e para onde vamos" não tem sentido algum para ateus, pois eles não se consideram a "obra-prima" de um criador, de tal modo que nós, humanos, não somos mais singulares do que uma sequóia ou um celacanto, sob o ponto de vista evolucionário.
nunca lhe passaria pela cabeça que o Universo fosse intgeligente ou que alguma inteligência misteriosa nele operasse?
As respostas para tais perguntas, volto a insistir, dependeriam do tipo de ambiente em que a criança foi educada. Em uma família atéia e com formação científica, as explicações de cunho panteísta ou teísta certamente não seriam providas aos seus rebentos.
os primeiros homens não foram injectados pelo sentimento religioso por ninguém, esse sentimento resultou da sua própria natureza e da evolução desde seres unicelulares...
É a sua explicação.
A minha é que do homem moderno primordial (há 200.000 anos, africano, coletor, com pouco conhecimento) até o homem moderno atual (global, urbano, com amplo conhecimento, principalmente científico) se pode perceber um gradativo, mas inexorável, processo de afastamento do "pensamento mágico", seja ele religioso ou metafísico.
Isto não significa que tal pensamento ainda não seja forte e não vá subsistir por longo tempo. Pelo contrário. Ele é fortíssimo. Mas o sucesso da Ciência em explicar as coisas naturais e humanas é incomparável frente às explicações absurdas e repletas de
ad hocs das religiões.
sem influências nem pró nem contra a criança tenderia a desenvolver formas de relacionamento com a natureza que se podem considerar como religiosas... quer viesse a criar uma ideia de Deus quer a sua religiosidade não passasse por essa ideia...
Se a criança for criada em um ambiente desprovido de informação e que lhe seja instilada um temor aterrorizante pela natureza, eu acho que sim, ela poderá desenvolver uma faceta religiosa animista.
Julgo eu, mas sem certezas absolutas.
Ok!