Continuação - ciência e filosofia:
“A responsabilidade do investigador”, “Positivismo, metafísica e religião”, “Controvérsia sobre política e ciência”, “As partículas elementares e a filosofia de Platão”.
Um outro exemplo – e este, quiçá, ainda mais radical, na medida em que faz assentar, na “fé”, isto é, em algo que habitualmente se atribui à religião, a própria ciência – é a afirmação de Einstein de que “Sem a fé na possibilidade de apreender a realidade por meio das nossas construções teóricas, sem a fé na harmonia do nosso mundo, é impossível a ciência. Esta fé é, e permanecerá sempre, o motivo fundamental de todas as criações científicas.”
No que respeita ao desenvolvimento da Filosofia – a Filosofia dita pós-hegeliana –ela orienta-se em três direcções fundamentais:
i) A recusa de uma concepção sistemática, totalitária e totalizadora, da Filosofia – que, se assim o podemos dizer, tendeu a substituir um “espírito de síntese” por um “espírito de análise” que tende a dar importância ao particular em detrimento do geral, à parte em detrimento do todo.
ii) A tendência para a especialização, acompanhando, nesta matéria, a Ciência e a cultura em geral – a pouco e pouco, também o filósofo se foi transformando num especialista de um certo domínio filosófico (a ética, a estética, a própria ciência), de uma certa corrente filosófica (o estoicismo, o marxismo), de um certo autor (Séneca, Santo Agostinho) ou mesmo de uma ínfima parte de alguma dessa coisas.
É precisamente desta especialização que surge, na viragem do século XIX para o século XX, a Epistemologia, enquanto disciplina vocacionada para o estudo dos problemas específicos relacionados com o desenvolvimento das Ciências e que, a 16 Albert Einstein, Lepold Infeld, A Evolução da Física, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p. 260.
Poder-se-ia aqui de certo modo aplicar, ao filósofo, a qualificação de “ignorante especializado” que Boaventura Sousa Santos aplica ao cientista da “ciência moderna”. Cf. Boaventura de Sousa Santos, Um Discurso sobre as Ciências, Porto, Afrontamento, 19968, p. 55.
Filosofia e Ciência
Pouco e pouco, se foi desdobrando em epistemologias regionais e estas, por sua vez, em epistemologias disciplinares e mesmo intra-disciplinares.
iii) A recuperação de um ideal de Filosofia que se aproxima, em larga medida, da concepção kantiana da Filosofia, menos como um conjunto de conceitos e doutrinas e mais como uma actividade – o “filosofar” – de resultados sempre provisórios e efémeros.
Em resumo: se o desenvolvimento da Ciência levou a que, de certo modo, os cientistas se tornassem “filósofos” – pelo tipo de questões que colocam, pela forma de as colocar e de as tratar, pela abertura ao domínio do saber tradicional da própria Filosofia – o desenvolvimento da Filosofia levou a que, de certo modo, os filósofos se tornassem “cientistas” – no gosto pela análise, na necessidade de especialização, incluindo quando se referem à Ciência, pela problematização constante dos seus resultados.
Verifica-se, portanto – como, aliás, o têm acentuado epistemólogos como Popper, Kuhn, Lakatos ou Feyerabend, e entre nós, o já citado Boaventura de Sousa Santos – que há uma cada vez maior indistinção, para não lhe chamarmos mesmo confusão, entre Ciência e Filosofia. É esta situação que propomos traduzir, precisamente, com o termo “miscigenação”.
Conclusão
A “miscigenação” que aqui registamos entre Ciência e Filosofia – que se traduz no facto de, por um lado, a Filosofia ter assumido características “científicas” e de, por outro, a Ciência ter assumido laivos “filosóficos” – não obsta, no entanto, a que uma e outra não mantenham uma certa especificidade.
Mas, e como resulta do que dissemos até aqui, e tendo também
J. M. Paulo Serra
em conta os epistemólogos pós-positivistas a que fizemos referência, essa especificidade não se situa, ou não se situa sobretudo, nem a nível do objecto – que seria delimitado no caso das Ciências e total ou indefinível no caso da Filosofia –, nem a nível do método – que seria “experimental” no caso das Ciências e reflexivo no caso da Filosofia.
Essa especificidade situa-se, antes, no facto de que a Filosofia continua a caracterizar-se mais pelo sentido do problema do que pelo da solução, mais pela hipótese do que pela lei, mais pela especulação do que pela comprovação.
Por isso mesmo, se a Ciência vai, de etapa em etapa, acumulando conhecimentos mais ou menos objectivos e ensináveis, a Filosofia está sempre condenada a começar de novo, a não poder senão aprender.
Podemos assim dizer, e utilizando a bela comparação de Hannah Arendt, que “a ocupação de pensar é como a teia de Penélope: ela desfaz em cada manhã o que acabou de fazer na noite precedente.”18
Os mal-entendidos – periódicos – entre Ciência e Filosofia só podem surgir quando, da parte de filósofos ou de cientistas, se pretende: quer “a morte da Filosofia” – uma pretensão tão absurda como o foi a pretensão da “morte da Religião”, vista como o “ópio do povo”, ou como o seria hoje, a pretensão da “morte da arte” ou, mais genericamente, de uma qualquer das formas da cultura e do conhecimento humanos; quer, pelo contrário, a submissão da Ciência a caminhos pré-determinados por uma qualquer Filosofia, por muito “científica” que ela se pretenda.
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