Examinando o tópico de forma mais ampla, considero que houve um mal-entendido acerca da relação entre a qualia, negação do materialismo reducionista e dualismo. Aparentemente, tem gente que acha que afirmar a existência da qualia ou negar o materialismo reducionista é equivalente a dizer que o dualismo é verdadeiro (mais especificamente o dualismo de substância, segundo a ligeira impressão que tive)
Reducionista da consciência e monista são conceitos distintos. Existem monistas reducionistas da consciência e monistas não-reducionistas da consciência. Aqui vai um trecho da Monografia “Irredutibilidade da consciência a causas materiais à luz das reflexões de John Searle” de Marney Eduardo Ferreira Cruz (ver o documento que já citei na minha resposta ao parcus):
4.1.2 O ponto principal da discussão
Oferecida a questão da Irredutibilidade da consciência a causas materiais, agora ver-se-á por que razão a consciência é irredutível. Uma das formas por meio da quais o problema pode ser colocado é que a consciência é um fenômeno biológico normal, assim como a digestão ou a fotossíntese, por exemplo. A partir desse pressuposto pode-se tentar explicar como a consciência se reduz a fenômenos, ou a microfenômenos, da maneira como acontece na digestão.
No caso da digestão pode-se dizer, em parte, que o que acontece é uma quebra de carboidratos ou de enzimas, isto é, um conjunto de transformações, mecânicas e químicas, que os alimentos orgânicos sofrem ao longo de um sistema digestivo para se converterem em compostos menores hidrossolúveis e absorvíveis. A digestão pode ser intracelular, extracelular, extracorpórea, extracelular e etc, mas depois desse processo todo não há muito mais a ser contado.
Sobre a consciência a análise é bem diferente. Pode ser oferecida a seguinte explicação causal da funcionalidade da consciência, como sendo, bombardeios de neurônios no tálamo e nas várias camadas do córtex, ou em termos de quarks ( um dos dois elementos básicos que constituem a matéria) e múons (partícula elementar semi-estável com carga elétrica negativa). Porém, no caso da consciência, diferentemente da digestão, existe um elemento subjetivo que é irredutível, que sobraria caso fosse feito um relato causal completo da base neurobiológica.
As formas de redução apresentadas nesse trabalho são chamadas por Searle ( 2000, p. 58) de Eliminatórias e Não Eliminatórias. Ele afirma que essas formas de redução não podem ser feitas pois:
“(...)o fenômeno padrão das reduções eliminatórias é mostrar que o fenômeno reduzido é apenas uma ilusão. No entanto, no que diz respeito à consciência, a existência da ilusão é a própria realidade.”.
Isso pode ser exemplificado comparativamente como a máxima do cogito cartesiano, “penso, logo existo”, mas que nesse caso se aplicaria da seguinte forma – se me parece que estou consciente, então estou, afirma Searle. Não posso ter ilusão da consciência se não estiver consciente.
A questão principal é: “Por que não podemos reduzir a consciência à sua base causal microfísica do modo como, por exemplo, reduzimos a solidez à sua base microfísica?”(SEARLE, 2000, p..59). A resposta a essa pergunta é argumentada por Searle (2000, p.59) da seguinte forma:“Bem, acredito que poderíamos se estivéssemos dispostos a deixar de lado a subjetividade e falar sobre suas causas.”.
Ou seja, no avanço da tecnologia pode ser criado um aparelho que verifica o cérebro da pessoa e diagnostica que ela está com dor no tornozelo esquerdo, mas somente porque notou e fez o médico ver o bombardeio de neurônios correspondentes sendo efetuados. Porém, mesmo que o médico insistisse em afirmar que a dor no tornozelo é notável porque se localiza uma determinada quantidade de bombardeio de neurônios que ocorrem em tais e tais lugares do cérebro, ele estaria esquecendo ou deixando de fora uma coisa essencial para o conceito de consciência, segundo Searle (2000, p.60): a subjetividade. Isso porque “A consciência tem uma ontologia de primeira pessoa, e, por essa razão, não podemos reduzir a consciência da maneira como fazemos com fenômenos da terceira pessoa, sem deixar de lado sua característica essencial.”.
Outro exemplo dessa situação é o seguinte: se o som de uma corda de violão for reduzido a um movimento vibratório das moléculas, deixando-se de lado a experiência do instrumentista ou de um ouvinte, seria eliminada a experiência subjetiva deles, mas isso não importa por que não interfere no conceito de solidez da corda. Conforme Searle, portanto, o caso da consciência é diferente porque caso seja eliminada a experiência subjetiva da consciência, não é possível atingir a finalidade principal do conceito de consciência, que é ter um nome para os fenômenos subjetivos da primeira pessoa.
[...]
4.1.3 As conseqüências da Irredutibilidade da Consciência
Considere-se, no modelo de redução, as propriedades sensíveis e perceptíveis tais como o calor, o som, a cor, a solidez, a liquidez. Verifica-se que se pode aplicar uma forma de redução a qualquer dessas propriedades e que a partir dela é possível alcançar certas conclusões, mas quando se tenta reduzir a consciência, as formas de redução nem sempre são aplicáveis.
Nas formas de redução citadas nessa monografia a redução ontológica tinha por base uma redução causal anterior. Searle (2006, p. 172) afirma que:
“em cada caso, tanto para as qualidades primárias como para as secundárias, o propósito da redução era suprimir as características superficiais e redefinir a noção original em termos das causas que produzem essas características superficiais.”.
Neste contexto, entende-se que quando a aparência superficial é uma aparência subjetiva procura-se redefinir a noção original eliminando a aparência de sua definição. Por exemplo: a noção que é utilizada em relação ao calor diz respeito a temperatura que é sentida, isto é, quente como o que é sentido como quente ou o frio ao que é sentido como sendo frio. E quando é explicada uma teoria em relação ao calor será provavelmente descrito que se trata de movimentos moleculares que causam a sensação de calor.
O que aconteceu foi uma redefinição do calor, como nos explica Searle, isto é, calor é redefinido em termos das causas subjacentes não apenas das experiências subjetivas, mas também dos outros fenômenos superficiais. O calor “real” existente passa a ser definido em termos da energia cinética dos movimentos moleculares e se trata de qualquer explicação ou descrição subjetiva, como por exemplo, a sensação que se tem quando se toca em uma panela quente, como um mero aspecto subjetivo causado pelo calor, não é mais parte do calor em-si, como era tratado antes.
Todavia se uma pessoa sente dor podem lhe indagar – Quais são os fatos? – a resposta poderia ser que há uma série de fatos físicos que envolvem seu tálamo e que há uma série de fatos mentais que envolvem sua experiência subjetiva de dor.
Mas por que o calor pode ser considerado como redutível e a dor não? A resposta que Searle (2006, p.174) nos oferece é que “o que nos interessa acerca do calor não é o aspecto subjetivo, mas as causas físicas subjacentes. Uma vez que consigamos uma redução causal, simplesmente redefinimos a noção para que nos seja possível obter uma redução ontológica.”. Segundo Searle, o que muda no calor depois da sua redutibilidade é sua definição, ou seja, simplesmente redefinimos o calor de modo que a redução resulte da definição. Todavia as experiências subjetivas de calor no mundo não foram eliminadas pela sua redefinição, continuam a existir como sempre existiram.
Existem reduções que possuem como característica geral a afirmação de que o fenômeno seja definido em termos de realidade. Já Searle discorda dessas reduções, ele afirma que sobre a consciência não pode ser feita a distinção aparência-realidade, porque consciência consiste nas próprias aparências. No momento que Searle descreve sua opinião a cerca da distinção aparência-realidade para a consciência no livro A Redescoberta da mente (2006,p. 176) ele nos oferece um resumo importante acerca da Irredutibilidade da Consciência:
“(...)a consciência não é da maneira que outros fenômenos são redutíveis, não por que o modelo de fatos no mundo real envolva algo de especial, mas por que a redução de outros fenômenos depende em parte da distinção entre “realidade física objetiva”, de um lado, e meras “aparências subjetivas”, de outro; e da eliminação da aparência dos fenômenos que foram reduzidos.” .
Portanto, como no caso da consciência, a realidade da Irredutibilidade da Consciencia é a aparência, a finalidade da redução deve ser esquecida se for suprimida a aparência e definir a consciência em termos da realidade física subjacente.
4.1.4. O aspecto trivial da IRREDUTIBILADE DA CONSCIÊNCIA
A questão geral, à Irredutibilidade da Consciência, pode ser refeita, pois para Searle (2006, p.177) a definição do fenômeno é de uma maneira que é independente da epistemologia, isto é, “(...) o padrão de nossas reduções fundamenta-se na rejeição da base subjetiva epistêmica em troca da presença de uma propriedade como parte do componente básico dessa propriedade.”.
A Irredutibilidade da Consciência não produz conseqüências metafísicas profundas, nenhuma conseqüência científica imprópria é uma conseqüência trivial conforme os métodos de definição da obra de Searle, pois: ou 1) Não demonstra que a consciência seja parte dos mecanismos fundamentais da realidade; ou 2) que a consciência não possa ser um objeto de investigação científica; ou 3) que não possa ser colocada na concepção física científica vigente no mundo.
A consciência, para Searle, não é redutível porque fica fora do modelo de redução que ele escolheu usar por razões pragmáticas, o materialismo, assim ela não pode ser redefinida em termos de uma microestrutura subjacente. Mesmo a partir do ponto de vista dualista de propriedades, o universo seria o mesmo, com um componente físico subjetivo como componente da realidade física.
Contudo, ele não quer dizer que a Irredutibilidade da Consciência seja um fenômeno misterioso, estranho ou maravilhoso, mas, uma vez que, a existência da consciência é admitida, não há dificuldade na compreensão e aceitação de sua Irredutibilidade. Mesmo assim Searle acredita que a consciência só possa ser redutível se surgir uma concepção, em meio a uma revolução intelectual, para superar a Irredutibilidade da Consciência, de acordo com os modelos padrões existentes de redução.